A vingança - 10

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— O menino Gonçalo veio despedir-se de vossé, padre Vieira, antes de partir para Portugal, disse José Soares.

— Mas por que o deixas esperando à porta? Não sabes o quão é arriscado para ele? Manda que entre, sim, talvez esta seja a última vez que o verei, disse Vieira.

Vieira passou a mão no queixo, com ar preocupado. Tinha vivos apenas dois sobrinhos homens, que prezava muito: Gonçalo Ravasco e Francisco Dorea. Filipa, a mãe de Gonçalo, fora irmã da formosa Maria por quem Francisco Manuel de Melo se apaixonara durante seu desterro na Bahia. Ao voltar da Europa, na frota de 1681, Vieira encontrara muitos parentes e amigos mortos. A mais sentida de todas as perdas fora a de seu sobrinho predileto, o capitão Cristóvão Ravasco, morto muito jovem a serviço de el rei, mais um tributo que os Ravasco haviam pago sem nada receber em troca.

Também mortos estavam quase todos os seus irmãos e irmãs.

Gonçalo Ravasco entrou na cela de Vieira. Ajoelhou-se ao lado do catre, beijou a mão do tio.

— Que bom que estás aqui, meu filho, disse Vieira.

— Está tudo acertado, meu tio?

— Eu... tenho pensado muito nessa tua ida a Portugal, Gonçalo. A navegação representa riscos, há tempestades, inimigos, calmarias, mares grossos e infestados de corsários, tu o sabes muito bem, perdeste tios, primos, amigos em naufrágios e descargas de artilharia. Mas se uma viagem por si só é arriscada, o que dizer de uma viagem como clandestino? Não, Gonçalo, pensei bem, creio que não deves arribar.

— Mas, tio, não posso deixar de ir. Da minha estada em Lisboa vai depender toda a defensa de nossa família. Nosso nome! Nossa honra! Ficar aqui talvez represente ainda mais risco. O Braço de Prata está com a mão no alto pronta a descer sobre nossas cabeças.

— A mão boa ou a mão ruim?, gracejou Vieira, meio amargo.

— Ele não tem mão boa.

— Todos têm uma mão boa, outra ruim. Olha para as tuas. Olha para as minhas. Dom João III era conhecido como o Piedoso, todavia mandou queimar milhares de judeus para sustentar a fé. Ele também era cristão. Um bom cristão. Não sejas afoito, meu filho, é hora de muita prudência.

— Nada me fará desistir, meu tio, perdoe-me a teimosia. — Está bem, Gonçalo, vai. Mas cuidado. Dize a sua alteza algumas palavras do sermão da terceira dominga da Quaresma, que fiz na capela real, no ano de 1655, na presença de el rei dom João IV.

As palavras tornam a ter ocasião, e as ocasiões, em tantos anos, necessitam as mesmas palavras. Dize ao príncipe que sendo as terras de Portugal as mais diversas, distantes e dilatadas de todas as monarquias do mundo, ponha vice-reis, ponha governadores, ponha generais, ponha capitães, ponha justiças, ponha bispos e arcebispos. Mas que muito juízo, muita verdade, muita inteireza, muita consciência é necessária a Portugal para distribuir cada um. Se o príncipe põe o cobiçoso onde há ocasião de roubo, prosseguiu, — e o fraco onde é preciso haver defesa, e o infiel onde é possível renegar, e o pobre onde há ocasião de se desempobrecer, se sua alteza põe assim dessa maneira as pessoas, o que há de ser das conquistas e dos que com tanto sangue as ganharam? Precisamos de homens que obrem proezas dignas de seus antepassados, elevou o dedo indicador. — Que despendam liberalmente com soldados, que pelejem, que defendam, que vençam, que conquistem e que façam justiça. Fez uma pausa.

— E não homens que nos aproveitem e nos arruinem, continuou Vieira, com voz extremamente mansa. — Não homens que se enriqueçam e deixem pobre o Estado. Não homens que percam as vitórias e venham carregados de despojos. E quanto mais longe for o lugar, tanto hão de ser os sujeitos de maior confiança e maiores virtudes, dize a dom Pedro, Gonçalo. Dize-lhe que quem há de governar a quatro mil léguas longe do príncipe, onde em três anos não pode haver recurso de seus procedimentos, nem ainda notícias, então que verdade, que justiça, que fé e que zelo deve ser o seu! Gonçalo Ravasco mantinha-se calado, atento às palavras do tio. Tenso, os músculos de seu pescoço estavam visíveis, a mão agarrava as luvas com força. Vieira sentou-se na cama, com esforço.

Boca do Inferno (Ana Miranda) (1989)Onde histórias criam vida. Descubra agora