A vingança - 9

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 Um monte de couros sobre palha servia de cama. O escrivão Manuel Dias estava deitado com a mulher. Suados, lado a lado, permaneciam imóveis. Ele pensava em Ursula do Congo. Depois de algum tempo Aldonça virou-se e olhou o marido. Viu seu perfil pálido e entristecido.

— O que há, Manuel? Que notícias trouxe o padre Vieira?

— Nada, mulher, nada.

Morcegos estavam pendurados nas madeiras onde se apoiavam telhas de barro escuro. Um deles bateu de leve as asas, fazendo um ruído soprado. Aldonça assustou-se.

— São apenas ratos velhos, ele disse. — Ratos velhos voadores. — Lembrou-se de seu sonho em que Ursula aparecia.

— Morcegos, padres, gente vindo aqui. Conversas em segredo. Não estou gostando nada disso. Esta casa velha, com um sapotizeiro ao lado.

— O que tem o sapotizeiro?

— É onde os morcegos preferem ficar. Por isso a sombra é agourenta. Os meninos estão proibidos de brincar lá.

— Crendices tolas. Mas tu tens razão. Muita gente está vindo aqui. Que diabo de esconderijo é esse? Amanhã bem cedo vou procurar um outro lugar para nós.

— Quanto tempo teremos que nos esconder?, disse a mulher, com tristeza.

— Pouco tempo, mulher, pouco tempo.

Ouviram o choro de uma criança. Aldonça ia levantar-se mas o escrivão segurou-a pelo braço.

— Deixa, as escravas cuidam do menino, ele disse.

Abraçaram-se.

— Há muito tempo não eras tão carinhoso comigo, ela disse.

— Tenho andado muito preocupado.

— Mais do que agora?

Ele olhou-a e sorriu.

***

A alguns metros dali, escondidos entre as folhagens, estavam dois cavalos.

Na cozinha da casa, o Gordo encostou a ponta da faca na garganta da escrava que, com os olhos arregalados, segurava a criança em seu colo.

— Manda ele calar a boca, senão eu mato todo mundo, disse o Gordo. A outra escrava deu uma cuia de leite para o menino, que parou de chorar.

— E agora?, disse o Gordo para o homem a seu lado, o alcaide Teles. — Elas viram a nossa cara.

— Não vamos falar nada, capitão, não vamos falar nada, disse a escrava, assustada.

— Podem levar tudo que quiserem, aqui não tem nada, é gente pobre.

— Ha ha ha, não tem nada. Ouviste o que ela falou? Aqui não tem nada, disse o alcaide Teles.

As negras ficaram caladas. Pressentiram o que eles buscavam.

— Onde está teu senhor? , disse o alcaide Teles.

— Está lá em cima, disse uma escrava.

— Saiu, disse a outra, quase simultaneamente.

— Põe o menino no chão, disse o alcaide Teles. A mulher obedeceu.

Foi a primeira a morrer. O Gordo deu-lhe uma estocada rápida e fulminante no peito e a mulher caiu no chão, jorrando sangue de seupeito como água de uma fonte. O menino voltou a chorar.

***

— Estou ouvindo barulho lá embaixo, disse Manuel Dias, levantando-se subitamente.

— Vou ver.

Boca do Inferno (Ana Miranda) (1989)Onde histórias criam vida. Descubra agora