O Crime - 2

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Durante a noite fria em que soprara um vento forte, Maria Berco não fora deitar-se, tomada de sentimentos sombrios, ouvindo seus próprios passos ressoando pela casa, vozes distantes, as patas dos cavalos soltos na relva, os dentes dos cavalos arrancando a grama do chão.

Ela estava fatigada, cheia de olheiras. Foi até o toucador e olhou-se no espelho.

Possuía uma estranha assimetria entre os dois lados do rosto.
Quanto mais se olhava, mais descobria diferenças entre as duas
metades. Prendeu os cabelos em tranças puxadas para o alto da
cabeça, recolhendo-as por uma coifa. Apressou-se com as roupas.
Estava atrasada para seu trabalho, naquela sexta-feira. Era dama de
companhia de Bernardina Ravasco. A filha única do secretário ficara
viúva, sem filhos e, embora fosse ainda uma jovem senhora, inspirava
muitos cuidados por ter uma saúde frágil.

****

A serpentina ia veloz pelas ladeiras. As ruas principais eram
largas e cobertas com pedregulhos. Havia passeios públicos nos
lugares mais notáveis e muitos jardins dentro ou fora da cidade, com
árvores frutíferas, plantas medicinais, verduras para saladas e flores
variadas. Muitas igrejas surgiam no caminho, várias em construção,
quase todas em pedra-lioz creme com veias cor-de-rosa. Os conventos
eram espaçosos e imponentes.

A intervalos, Maria Berco tirava a cabeça de entre as cortinas e
mandava que os escravos andassem mais rápido. Porém, ao chegarem
na rua de Trás da Sé, o caminho estava bloqueado por soldados do
governador. Maria Berco informou-se sobre o que acontecia. Enrredou por outra passagem e fez uma volta para chegar ao solar dos. Pagou
aos escravos e saltou, apressada.

****

Bernardo Ravasco mandara avisar que dormiria na quinta do
Tanque e que, depois do amanhecer, passaria em casa. Por que estava
demorando tanto?

Bernardina Ravasco abriu a porta do quarto de seu irmão. Não havia ninguém, a cama estava arrumada e um leve cheiro de mofo recendia no ar. Há noites o jovem Gonçalo Ravasco não dormia em casa, refugiado no colégio dos jesuítas para escapar a uma condenação
de degredo emitida pelo desembargador João de Gois, que poderia ser chamado de braço direito do governador, caso este não tivesse um de prata, pois em casa de maneta não se fala em braço. Portanto, João de Gois era chamado de um leal palaciano.

Maria Berco entrou na casa dos Ravasco, agitada. Como a
maioria das casas da cidade alta, o solar dos Ravasco era amplo, de
três andares, cada qual com quatro sacadas, coberto de telhas curvas,
entrada em pedras entalhadas, no estilo dos velhos palácios da Alfama.
Nos aposentos quase não havia móveis, porém muitos quadros se
espalhavam pelas paredes.

— O que houve, Maria?, disse Bernardina Ravasco.

— Que mais tumulto está a cidade. Mataram o alcaide.

— Valha-me Deus, onde anda meu pai?

Maria Berco foi até a cozinha. Bernardina Ravasco seguiu-a, curiosa. — Por que estás tão esbaforida?, disse.

— Nada, dona Bernardina, nada. Maria Berco falava baixo,
como se temesse ser ouvida por mais alguém. Abriu, apressada, a
porta que dava para o quintal. Uma névoa fria entrou na cozinha.
Sentou-se no poião da porta e ficou ali, pensativa, esperando.

Bernardina Ravasco sentou-se ao seu lado.

— Não podes esconder nada de mim. Conta-me tudo, Maria. — Maria Berco ficou calada, com os olhos baixos.

— Tenho que saber o que houve. Anda, fala, Maria.

— É que vosso coração...— — Meu coração vai me matar um dia qualquer, sei disso. Mas morrerei hoje mesmo se não me contares o que se passa.

Boca do Inferno (Ana Miranda) (1989)Onde histórias criam vida. Descubra agora