A Vingança - 6

15 2 0
                                    

Quando o sol nasceu, Luiz Bonicho já estava acordado. — Pernambuco? Rio de Janeiro? Lisboa? Paris? Ah, nossa velha Paris. Um nome falso, um disfarce e tudo estará resolvido, pelo menos por enquanto. Depois voltamos.

Luiz Bonicho falava sozinho, ao espelho.

— Para onde iremos, vereador?, disse para sua imagem.

Luiz Bonicho tinha vendido apressadamente seus bens, temendo as represálias do governador. Guardara consigo as jóias e o dinheiro. Eram o suficiente para se viver alguns anos em Portugal, ou em Paris.

— Ah, Paris! Palácios de cristal e ruas imundas.

Luiz Bonicho estava no pardieiro velho na cidade baixa, onde se refugiava. Via pela janela os barcos sendo carregados e descarregados.

— Azeitonas murchas, couro de cordovão, continuou Luiz Bonicho. — Lá vou eu, de novo, fugir, como um bacalhau velho num porão, servir de isca para tubarões e piratas.

Mantinha alguns homens fortemente armados à entrada do valhacouto. Donato Serotino, um inconseqüente e irresponsável temerário jovem de idéias superficiais a respeito do mundo, andava pelas ruas como se nada estivesse acontecendo, pensou Luiz Bonicho.

Por que não podia ficar dentro de casa? O que tanto o atraía na rua? Acabaria por chamar a atenção do alcaide Teles e do Gordo para o sobrado miserável onde se escondiam.

A porta se abriu. Entrou um homem forte com o chapéu enterrado na cabeça, casaco longo e botas escuras.

— Por que demoraste tanto? Já é noite. Estás disfarçado de criminoso querendo passar despercebido, disse Luiz Bonicho.

O mestre de esgrima Donato Serotino tirou o chapelão e sorriu.

Que dentes!, pensou Luiz Bonicho. Brilhavam mesmo à pequena luz da candeia, perfeitamente brancos e regulares, simétricos, clássicos, como monumentos gregos. O corpo também era assim, a maneira de mover-se com uma grande harmonia. Serotino era uma perfeição. As mais belas pernas de todas as colônias, de toda a Europa, mais belas que as pernas de todas as vênus do pagão sentimental, mais belas que as pernas de todas as estátuas romanas, mais belas que as pernas desenhadas nos afrescos das capelas, mais belas que um palácio inteiro, mais belas que toda Paris!

— Meu disfarce está perfeito. Caminhei incógnito pelas ruas, disse Donato Serotino.

— Andei nos becos, diverti-me conversando com conhecidos que não me reconheceram e, pensando que eu era um mercador rico de

Veneza, me trataram com muita reverência. A cidade está calma. Há soldados pelas ruas, mais do que os costumeiros, uma meia centena, talvez. Estão atentos, mas nem desconfiaram de mim. Pareciam mais preocupados em prender uns estudantes que ousaram sair de capa pelas ruas, apesar da proibição do Braço de Prata. Estive com Gonçalo Ravasco.

— É um grão-cu, esse Gonçalo Ravasco, disse Luiz Bonicho. —

Covardemente deixou de matar o Braço de Prata.

— Ele deve ter tido algum motivo.

— Não existe nenhum motivo na face desta terra para que alguém desista de matar aquele canalha. Mas tanto faz, se nem nós nem Gonçalo conseguimos matá-lo, esperaremos que termine seu mandato enquanto nos divertimos na bela Europa. Sem o cargo, voltará a ser apenas um maneta. A dívida do príncipe estará paga e o Braço de Prata será mandado para algum lugar imundo na África, pior que este culis mundi aqui. Para mim, sendo o que sou, tanto faz estar no Brasil ou em Portugal. Só é diferente, só é bom, estar na França. Deves estar perguntando a ti mesmo, então, o que eu estive fazendo aqui esses anos todos, não é? É que aqui sou mais poderoso e notável. Dentre os três mil ricos da cidade talvez eu seja o único corcunda. Em Paris há mais de uma centena de corcundas. Basta contar os da comédia. Lá, nosso lugar está sempre ocupado, temos que viver dando pontapés nos traseiros dos outros para que desocupem nosso lugar.

Boca do Inferno (Ana Miranda) (1989)Onde histórias criam vida. Descubra agora