A Devassa - 4

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Nihil est in intellectu, quod prius nonfuerit in sensu, nisi intellectus ipse, o padre Vieira mesmo não dissera que nada havia no entendimento que não tivesse sido sentido, a não ser o próprio entendimento?, pensou Gregório de Matos. Achou que estava ficando louco, pensar, numa hora dessas, em Aristóteles e Leibniz. Tudo vai mal no mundo dos possíveis.

Bernardina Ravasco estava presa ao leito, doente, cercada de criadas, bacias e panos úmidos. O cirurgião-barbeiro, ao lado da cama, aplicava-lhe picaduras. Pequenas gotas de sangue escorriam na pele alva da doente.

— Ai, gritou Bernardina Ravasco, — peço que suspendais essa mezinha!— O cirurgião tomou-lhe o pé e o meteu na bacia de água fria. Pediu sal para o caso de a doente desmaiar. 

Gregório de Matos aguardava na sala, aflito. Depois de algum tempo o cirurgião-barbeiro atravessou o aposento, cumprimentou o poeta e saiu pela porta da rua. Em seguida, Gregório de Matos foi levado ao quarto da senhora.

Entrou constrangido, pé ante pé, levando um pequeno ramo de flores que tirara da jarra sobre a mesa da sala. Bernardina Ravasco, deitada, estava mais pálida e frágil que nunca, os olhos arroxeados em torno, as mãos lívidas sobre o peito.

— Perdoai-me, senhora, procurar-vos neste momento. Peço, aceitai esse ramilhete. 

— Ah, enfim um alento no meu padecer. Estou enferma dos dias que passei na enxovia, um lugar digno de acolher apenas régulos e fascinorosos. O Braço de Prata, de hipocrisia, nos mandava manjares de seu próprio banquete, candis para alumiar e lençóis limpos para os catres; mas nada nos trazia alívio. Nem mesmo tive o consolo de rever meu pai. Ah, não é fácil viver entre os insanos. Mas desejo esquecer,  disso nunca mais falar. O que vos traz? Boas novas?

— Antes fosse, senhora. Preciso de vossa ajuda.

Gregório de Matos relatou sobre o processo de Maria Berco.

— Portanto, preciso de dinheiro para a fiança, senhora. Já estive com todos os agiotas, mas não me concederam crédito. Meus parentes de cabedal não pude encontrar.

— Quanto?

— Seiscentos mil réis. É para amanhã.

Bernardina Ravasco retirou os pés da almofada e levantou-se do catre, penosamente.

Sobre a cama se espalhavam bandejas e xícaras, pratos com farelos, taças; na mesa havia mais louças, com restos de vitualhas.

— Valha-me Deus!, disse Bernardina Ravasco. — Seiscentos mil!

— Só assim poderemos dar livramento à senhora.

— Será que se pode cobrar tanto numa fiança?

— Não tenho dúvidas, senhora.

— Sofro só em pensar que Maria esteja com as mãos em algemas, o pescoço em grilhões de ferro, entre aquela gente belicosa. Não tenho tanto dinheiro, com meu pai na enxovia e os cabedais trancados no cofre. O único remédio que me vem à cabeça é Samuel da Fonseca.

— Pedir dinheiro a um judeu? Só a doze por cento.

— Não dom Samuel. É como se fosse cristão.

— Onde está ele?

— Quem sabe em Matoim, onde fazem a leitura da Torah. Não creio que ele tenha em seu cofre esta quantia, mas eles possuem um fundo de assistência para resgatar judeus aos piratas que infestam os mares.

— De onde vem esse dinheiro?

— Impostos que todos os judeus pagam sobre mercancia; sobre ouro, prata, pedras preciosas, âmbar, enviados para fora; taxa sobre açúcar embarcado, sobre lucros de provisões, sobre negros, sobre venda de casas, sobre naus corsárias apresadas. São muito unidos.

Boca do Inferno (Ana Miranda) (1989)Onde histórias criam vida. Descubra agora