A vingança - 5

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Vieira seguiu pelo Matoim, acompanhado de José Soares. Foram
beirando o rio até chegar a um pequeno povoado onde entraram num bosque, por uma estreita trilha, parando diante de uma casa abandonada de engenho, alta e espaçosa. Escondido entre as árvores, o prédio quase em ruínas levantava-se à margem do rio sobre grandes pilares de tijolos. Coberto de telhas assentadas sobre tirantes, frechais e vigas de madeiras de lei, tinha duas varandas ao redor, uma que fora a casa da moenda, outra a casa das caldeiras.

Os jesuítas entraram pelo galpão até um grande portão de ferro no fundo. Padre Soares bateu. Viram uma sombra atrás de uma pequena fresta. Depois de alguns instantes uma voz veio de dentro.

— O que querem?

Vieira anunciou-se.

Os padres ficaram, então, muito tempo aguardando. Dois bois magros pastavam. Havia eixos, canos, rodas espalhados pelo mato; aguilhões, arruelas e chavetas no chão.

Os jesuítas ouviram o ruído de botas e metais por detrás da porta. Entreolharam-se e com ansiedade viram a porta abrir-se. José Soares recuou. Cinco homens surgiram, armados.

Antonio Vieira estendeu uma carta que o mais velho pegou e leu. A carta passou de mão em mão e todos a examinaram cuidadosamente. Depois disso, deixaram os visitantes entrarem.

Os padres foram levados através de um pátio para uma sala ampla onde havia apenas um armário com uma lâmpada acesa e uma longa mesa com uma bacia. Colunas sustentavam uma marquise sobre a qual se enfileiravam cadeiras de espaldar alto. A pouca luz vinha de cima, através de frestas entre telhas quebradas.

Entraram noutra sala, que cheirava a mofo, mais escura que a anterior, com o teto forrado de madeira. Havia uma mesa enormecercada de cadeiras maciças. Na obscuridade, Vieira viu o rabino ao fundo da sala, vestido com uma túnica branca. O homem tinha o crânio calvo ovalado, o nariz marcado por sulcos profundos deixados pelos
óculos pequenos que trazia na mão repousada sobre um livro. O rabino
fez sinal para que os padres se sentassem.

— Bem-vindos, disse, com uma voz cálida e rouca, colocando os óculos, que fizeram crescer seus olhos negros, melancólicos, flutuantes, sob os quais havia duas bolsas conjuntivas cheias de rugas. Tirou o iármulque da cabeça, coçou as orelhas pontudas, ajeitou-se na cadeira à cabeceira da mesa e olhou para Vieira demoradamente, com os olhos apertados.

— Samuel da Fonseca?, disse Vieira.

— Sim, padre Vieira, sou eu mesmo. Então estou diante do ilustre jesuíta de quem tanto fala meu amigo - e vosso irmão - Bernardo Ravasco. Apesar de tantas divergências entre as nossas doutrinas sois capaz de não vos entregar a instintos recalcados e cobiçosos como muitos de vossa gente. Nosso povo só tem a vos agradecer. Não creio que possais lembrar-vos de mim mas, há muitos anos, estive convosco, em Rouen, quando lá fostes vos encontrar com judeus portugueses fugidos à Inquisição, e estivestes na casa do poeta Antonio Anrique Gomes, o protegido do cardeal Richelieu.

Isso foi há uns vinte anos atrás, em 1664, e eu também lá estava de passagem, pois morava em Amsterdã com meu tio.

— Ah, sim, recordo-me vagamente, apesar de já estar bastante velho. Tão velho que vinte anos atrás são como se fosse ontem às oito e meia da noite.

— Em Amsterdã, continuou o rabino,— tive o prazer de assistir à prédica do afamado Manasseh ben Israel, à qual, com muita cordialidade, fostes também ouvir. Sabendo do ouvinte que tinha na assembléia, Manasseh procurou exibir seus dotes de orador e tentou provar a superioridade da antiga lei. Soube que vós procurastes o hakham Manasseh à saída e que se deu uma disputa retórica que durou longo tempo e à qual, infelizmente, fui privado de assistir. Doismestres em teologia, dois sábios. Ambos possuíam igual força de argumentação, igual amor pela disputa de idéias, ambos versados na Escritura e, vencidos pelo cansaço, saíram sem um poder convencer ao outro.

Boca do Inferno (Ana Miranda) (1989)Onde histórias criam vida. Descubra agora