a virada de ano

26 7 0
                                    

20 de janeiro de 2020

Você também acha o modo como usamos a palavra "lembrei" conclusivamente errôneo? Veja bem; na grande maioria das vezes em que digo que lembrei de nós, de alguma lembrança ou momento, na verdade sempre as tive comigo em pensamento constante. Lembrar é trazer a tona algo quase equivocadamente esquecido. Permitido beirar o esquecimento. Só que eu pensei por muito tempo que, jamais faria isso, jamais seria tão descuidada com os melhores momentos que tive na vida. E puta merda, como eu estava errada. Peneirar suas migalhas para ficar com o que achei que fosse merecedor de zelo? Vergonhoso. Nada do que você deixou com os destroços da sua realocação desastrosa me faria algum bem. Você foi embora sem olhar para trás, enquanto sabia que estava sendo soterrada por toda tristeza e insegurança.

Hoje mais cedo na fila do mercado, uma senhora comprou dois jornais do dia anterior. Nele havia uma matéria sobre um casal estrangeiro que estava se separando. As fotos escolhidas revelavam sorrisos largos e por um instante me ocorreu "como alguém pode estar tão feliz por se separar de alguém depois de tanto tempo juntos?". E me ocorreu em seguida, o nosso relacionamento conflituoso, e pensei que, sendo assim, os sorrisos pudessem ser justificados. Só que o que realmente chamou minha atenção foi o título da matéria: "vulnerável". E essa palavra define muitos momentos de tudo que vivi, e pensar nela me fez reviver de modo praticamente tangível todo o começo do ano de 2016.

Quero começar pelo dia 31 de dezembro, antes dos fogos, espumantes, falsas felicitações e promessas. Eu estava em Goiânia e você no Rio de Janeiro. Infelizmente não estaríamos juntos, mas combinamos que, assim que o relógio anunciasse a virada, o primeiro que lembrasse ligaria para conversarmos. Mais cedo nesse mesmo dia, você estava falando de ir morarmos juntos no Rio, e imaginar que você me incluiu ao fazer tais planos, me encheu de euforia e excitação. Aquilo tornou praticamente insuportável não estar contigo naquele momento.

Faltavam algumas horas para a virada. Você estava sumido do celular e eu pensando que talvez não fôssemos conversar como havíamos prometido.

Não sei o que fez naquela tarde, mas Duda e eu estávamos compartilhando nossas marcações mais íntimas de post-its dos livros que líamos juntos. Havia este, com uma capa não tão chamativa pelos teus padrões, menos ainda pelos meus, e nele havia a seguinte frase: "O silêncio sempre foi meu grito mais alto". Foi a frase que Duda marcou com aquela fitinha flag cor de pêssego. Sabe o que chama atenção agora? Livros conversam com a gente. Diferentes assuntos em diferentes épocas da nossa vida. Pude jurar que aquele livro não falaria comigo, como afirmo que não havia falado. Eu não havia feito nenhuma marcação sequer, mas mais tarde viria marcar o mesmo trecho de Duda, com a mesma fitinha flag cor de pêssego, mas com o coração esmorecidamente mais pesado. Pensei cá com meus botões, que nunca compartilhamos os post-its das nossas vidas tão bem como deveríamos. Culpe isso também pelo fracasso da nossa dolorosa história de desamor.

— Ele te faz bem? — Duda me perguntou como se não estivesse ensaiando essa frase desde que começamos a passar por esses momentos azedos.

— Sim?! — deveria ter saído como uma afirmação, mas minha entonação entregou uma incerteza que faltou perguntar a própria Duda por uma resposta.

— Não sei se acredito em você... Tipo, ele parece ser legal e essas coisas todas, mas... — sempre havia um "mas" ou uma pausa dramática quando se tratava de Duda, e às vezes, como nessa vez em especial, ambos. — Parece que vocês não estão num momento muito bom.

Quis dizer "engano seu, estamos muito bem", mas diferente de você, Miguel, eu sempre menti muito mal.

Eu simplesmente maneei a cabeça como se ela não tivesse dito nada, ou nada muito importante que merecesse ser respondido, mesmo sabendo o quanto isso a irritava.

Invadiu-me uma sensação de ser o ser mais patético do mundo inteiro por estar lendo marcações de post-its flags há poucas horas da virada do ano. Mas não por conta do ato de estar lendo as marcações, mas por remetê-las todas elas a você. Porque quando se ama, tudo é sobre aquela pessoa. E achava que você era a minha pessoa, e hoje só peço a Deus, ou seja lá quem comanda toda essa vastidão, que nenhuma pessoa tenha o desprazer de ter-lhe como essa pessoa.

Duda foi embora antes das seis da tarde. Minha madrasta e minha tia já haviam a pouco terminado as sobremesas que nunca podiam faltar. Mousse de maracujá com poupa da fruta como cobertura era uma delas. Você adorava, e só de vê-lo ali, pronto para gelar naquela travessa de vidro, já ansiava pela meia noite. Os relógios pareciam programados para retrocederem as horas, pois elas não passavam.

Meu pai chegou em casa. Avisando que passaríamos aquela virada de ano na igreja. Meus irmãos, cada um por sua vez, adoraram saber daquilo, pois poderiam logo após, irem para a casa de um dos amigos que ficava não muito longe dali. Daria muito tempo para te ligar no momento que havíamos programado.

A noite demorou passar, mas enfim se foi. Meu pai e minha madrasta foram embora para casa e, junto com meus irmãos, fui para a casa do tal amigo que até hoje não sei o nome.

Já era quase meia noite. Assim que chegamos fomos bem recepcionados. Observei ao entrar junto ao pessoal, alguns casais na beira da piscina que era possível sentir a brisa gelada sem nem ao menos entrar. Pensei em nós.

E sempre que algo de casal ou simplesmente romanticamente clichê aparecia, já fazia planos para reproduzirmos a nossa maneira. Um dos casais naquela noite dividia uma cadeirinha de piscina, completamente molhados enquanto se beijavam como se não estivessem sozinhos. Fizemos muito isso, beijar como se fossemos as únicas pessoas no mundo inteiro, mas nunca era o suficiente, eu sempre desejava mais uma oportunidade de estar novamente contigo para nos beijarmos até que um de nós precisasse recuperar o fôlego.

Enfim dera onze e cinquenta e sete. Fugi de todos os abraços e felicitações demoradas de todo aquele pessoal e fui para o interior da casa. Procurei por um quarto mais próximo possível. Dormia uma criança com a TV ligada quando abri a porta do primeiro quarto e meu celular tocou. Entrei ali mesmo. Foi você quem me ligou primeiro. Atendi.

— Ainda não é meia noite. — disse.

— No meu relógio toda hora vira meia noite pra falar com você.

Você ainda me fazia corar, e mesmo que não pudesse me ver, você sabia que havia o feito mais uma vez.

— Te desejo um feliz ano novo agora ou quando finalmente for hora? — perguntei, pois já era possível ouvir fogos de artifício de ambas as linhas.

— Queria estar com você, mas já que estou falando contigo, e isso por enquanto deve bastar, todo o resto pra mim pode ir se foder. Então, não me importo.

Me lembro de toda aquela sensação gostosa que aquela conversa me proporcionou. Aquela sensação de estar apaixonada me deixava extasiada. Eu formigava para dizer que estava com saudades de você, mesmo que estivesse no Rio de Janeiro há apenas sete dias. Mas havia muito mais a ser dito, principalmente o mais sincero e equivocado:

— Eu te amo. — que disse sem sequer perceber.

Você ficou em silêncio não muito demorado e em seguida acompanhou-se uma risadinha esnobe e pretensiosa.

— Repete. — você pediu.

Revirei os olhos e fiz com que você esperasse até que a ficha caísse que eu realmente havia dito o que disse. Era verdade. Eu te amava. Então repeti.

— Eu te amo, Miguel.

Percebi a ligação ficando mais distante, você estava indo a algum lugar mais silencioso. Não disse nada até que você voltasse para a linha com sua retribuição que soou tão espontânea e verdadeira.

— Tessa, você não faz ideia do quanto eu também te amo.

E estamos diante dela, Miguel, a não única, tampouco a última, mas a maior das tuas mentiras.

— T.
21h21min

Por Isso Você Nunca Poderia Me AmarOnde histórias criam vida. Descubra agora