isolados

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27 de Janeiro de 2020

Sabe, não sei porquê ainda estou escrevendo tudo isso. Mas só de sentir que não difere em mais nada dentro de mim, me incentiva a continuar. Talvez você sequer leia todas essas correspondências. Aliás, correspondência nunca foi algo que você soube lidar.

A partir daqui, tudo que irei detalhar, vai carregar um peso extra de incerteza. Porque depois daquela noite você não voltou para nossa casa. E eu te esperei. Tentando ensaiar uma compreensão que no fundo sabia que não conseguiria sustentar. Mas você não apareceu, não é mesmo? Me conte, Miguel, para onde você foi? Que lugar te recebeu tão bem que você não voltou nem para buscar suas coisas? Após ter me viciado em acordar sentindo sua respiração abafada em minha nuca, por que me obrigou por semanas a acordar sem sentir você do lado? Por que me obrigou a ver todos os dias sua maldita escova de dente de cerdas finas, ou seu perfume caro que hoje não consigo mais gostar? Por que me obrigou a te ver dentro do nosso guarda-roupa todas as vezes que precisei me trocar? Aquela sua camiseta escrita "stop thinking of what could go wrong" parecia me encarar e zombar de mim. Parecia dizer "eu sei que está pensando nele, mas ele não vai voltar, e você sabe". Eu tive medo de estar naquele quarto. Então, passei a dormir na sala. O sofá era confortável, mas ninguém recomendaria dormir tanto tempo assim em um móvel tão pequeno. Comecei a ter dores no pescoço, ombros e costas. Minha postura adquiriu um ar de tristeza, de desleixo e que respondia por si mesma os inúmeros "você está bem?". O bom era que eu não precisava respondê-los, mas depois me dei conta de que aquela tristeza, sua tristeza Miguel, — porque você que a deixou plantada para me consumir de dentro para fora na minha própria casa — estava fazendo um ótimo trabalho. Eu já não me sentia eu mesma. Sequer achei que estivesse viva até me perguntar se realmente estava.

Meus amigos me procuraram. Quiseram reparar os danos que você deixou, mas não era possível. Eu sabia que não. Foi quando suas raízes me arrastaram mais firmemente, como se não me quisessem somente rente ao chão, mas abaixo dele. Então perdi minha primeira amizade, a Jê. É claro que as intenções dela eram as melhores possíveis, só que eu estava cega, Miguel. Foi a Duda quem mais teve paciência comigo, mas ainda assim, era demais para qualquer pessoa ter que lidar comigo naquele estado. Era como se eu pesasse o dobro de tudo que sentia, e fosse impossível que, com o estrago das minhas feridas, alguém conseguisse me carregar para um lugar armênio. Quase a perdi também.

Isso foi em 2016. E eu precisei de quase dois anos para que essa ferida pudesse cicatrizar. E cicatrizou. Ao menos foi o que achei.

Foi quando tentei sair com outras pessoas que finalmente vi o quanto você estava hospedado como uma praga do Egito ou erva daninha na cultivação de rosas de ouro de alguém. Me odiei como jamais pensei que fosse possível. Nunca consegui entregar cem por cento de mim para nenhuma pessoa que veio depois de você, porque eu não sabia quanto ainda tinha de mim mesma, e isto tornou impossível continuar tentando conhecer alguém. Não continuaria espalhando porcentagens vazias de mim. Não me tornaria você. Jamais.

— T.
23h23min

Por Isso Você Nunca Poderia Me AmarOnde histórias criam vida. Descubra agora