sofrimento imensurável

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28 de Janeiro de 2020

Escrevi três correspondências pra você no mesmo dia. Imagino que isso seja suficiente pra te fazer pensar no quão difícil foi passar por aquele inferno. Sempre penso que se esse término — se é que assim posso chamá-lo — pudesse ter sido ameno, conversado da maneira que a ocasião normalmente pede. Assim seria mais fácil aceitar sua carta. Pensei por tanto tempo que poderia ter sido tranquilo, mas ao compreender que foi melhor dessa forma, bruta e irresponsável, que me livrou de estar preso num relacionamento infeliz até os dias de hoje.

Por seis dias fiquei trancafiado no quarto que sempre fora meu na casa dos meus avôs. Após ter sido refém das noites que me atormentavam, consegui aos poucos recordar a sensação que era estar desacordado. Só dormi de verdade quase duas semanas depois. Existem os tais estágios pós-término, sei que sim, mas não faço ideia de quais são, e se os conclui com êxito. Só que quando lhe digo que me arruinei, eu falo sério. Por que depois daquela primeira semana dolorosa, tentando fazer com que meu peito aceitasse a ideia de que você tinha escolhido ir embora, fazendo minha mente parar de me torturar quando tudo que ela via me remetia você. Seu cheiro e sua silhueta em outros corpos, seu andar em outros passos, sua sombra contra outras luzes. Depois de todos os piques de loucura em que eu seguia completos desconhecidos pra te implorar por uma explicação, quando tentava ligar para o teu celular pra ver se iria tocar em outros bolsos por aí. A rua me engolia e me cuspia de volta quando conseguia me enganar, e ela ria de mim, em cada esquina que eu me perdia e em cada olhar que eu encarava com os olhos mareados de lágrimas, para cada "me desculpe, achei que fosse outro alguém" que meus lábios diziam sendo que minha garganta queria mesmo era gritar pelo teu nome. Foi somente depois de tudo isso, que você reapareceu. Talvez tivesse ido à nossa casa antes de aparecer ali, naquela chuva que, batendo no telhado, ensurdecia os tímpanos mais sensíveis, que caía forte contra a pele, causando uma sensação de perfuração no rosto, foi aí que você deu as caras; com as mãos enterradas no bolso da maldita jaqueta da Pallet Stone, esperando que eu saísse após teu chamado. E eu fui. E mesmo que eu tivesse milhões de perguntas pra te fazer, milhões de pedidos de desculpas presos na garganta que nem deveriam sequer ter sido cogitados, não tive postura para dizer algo. Meu corpo simplesmente petrificou a frente do teu.

Você me observou, entre os pingos insistentes da chuva, seu olhar mapeava minha expressão digna de pena. Sei que estava horrível. As olheiras das noites passadas em claro, minhas bochechas fundas pela — quando presente — má alimentação, as roupas pouco vistosas e, — admito embora com muita vergonha — fedendo por passar tanto tempo pensando em você, que acabava me esquecendo completamente até da minha própria higiene. Não é normal amar assim, e talvez tenha sido por isso que sentia no peito que morreria de desgosto.

— Você está péssima. — você disse. E que audácia dizer aquilo quando foi causador de tamanha desgraça.

Continuei não dizendo nada. Queria ter certeza de que tudo que eu dissesse seria o certo a dizer, pra que a voz na minha cabeça não jogasse a culpa toda em cima de mim caso algo não saísse bem.

— Venha aqui, me dê um abraço.

E é claro que fui Miguel. Fui desesperadamente como se você fosse maldosamente retirar o convite a qualquer momento. Tenho certeza que nunca tinha abraçado ninguém daquela forma, e mesmo depois daquele abraço, nem mesmo você recebeu outro igual.

— Eu senti tanta falta de você. — chorei enquanto dizia. Tola demais pra acreditar que você havia voltado para o nosso mundo. Que voltaríamos a ser um "nós".

— É sobre isso que quero conversar. Por isso estou aqui. — me afastou enquanto dizia.

Encarei teus olhos. O frio que eles emitiram, sobressaiu ao vento gélido que a chuva trouxe consigo.

— Então diga.

— Tenho um enorme sentimento por você... Você sabe disso. Mas preciso de um tempo.

Vi-me disposta a te dar quanto tempo você precisasse, mesmo que soasse desconfortável ver-me estipulando longos prazos, e imaginando se aquilo seria possível. Faria ser.

— Tome o tempo que precisar. — disse voltando para o abraço.

Você não desejava aquele abraço, sabe-se lá o quanto deve ter o odiado, por ter-se forçado a aceitá-lo. Por que sim, Miguel, eu senti que você queria me repelir.

— É que talvez seja muito tempo...

— De quanto tempo estamos falando? — me afastei tão lentamente quanto a chuva que se retirava do mesmo palco onde os holofotes ainda estavam em nós.

O meio segundo de silêncio emendou-se a um "buff" que você fez enquanto começava a andar de um lado para o outro.

— Preciso dizer isso logo.

— Miguel, diz logo! Sem rodeios!

— Eu não acho que ainda quero continuar isso. — você falou enquanto sacudia os dois indicadores em ambas nossas direções.

— Com "isso", você quer dizer "nós"?

Me perguntei o tempo inteiro naquela noite onde estava sua voz. Por que lhe custava tanto dizer o que tinha pra dizer?

— Sim... Estou indo embora para o Rio de Janeiro.

Não havia chão além do pequeno espaço sufocante que se fazia presente abaixo dos meus pés. Desejei que você tivesse desaparecido no mesmo instante em que disse aquelas palavras, pra que minha vergonha viesse ser menor.

— Por quê?

— Por que não sei o que estamos fazendo juntos. Eu deveria ter feito isso antes, mas achei que se insistisse nisso, poderia... — você parou, e bufou novamente. Você fez aquilo diversas vezes àquela noite.

— Poderia me amar? — completei por você.

Mais uma vez o odioso silêncio. De certo modo, parecia que você o dominava onde quer que estivesse. E seu domínio sobre ele no momento em questão, fez com que me sentisse absolutamente certa.

— Sim.

Durante toda aquela conversa eu rodava a aliança que pusera em meu dedo e que, até aquele dia eu não havia tirado. No mesmo instante daquele "sim" tão fingido de condolência, eu a retirei e a joguei contra teu peito.

— Fique com essa merda! Vá para o inferno Miguel!

Você não a segurou e teve que apanhá-la do chão.

— Por que fez isso? — perguntou levantando-se.

— Por que eu te amo! E isso foi a pior desgraça que poderia ter acontecido comigo. Vai embora daqui!

Te dei as costas e sem olhar para trás entrei para casa. Estava completamente molhada, e fora os olhos inchados e explicitamente vermelhos, isso impediu que meus avôs percebessem que estava chorando. Fui direto para o quarto, tirei aquela roupa encharcada e me consolei com um banho extremamente quente. Minhas costas doíam conforme a água caia, e parecia que a qualquer momento a pele escorreria pelo ralo. Só que aquilo não foi o suficiente para que eu pudesse distrair-me da dor que aquela conversa havia causado. Ali eu recebi a insanidade sem percebê-la chegar.

— T.
01h03min

Por Isso Você Nunca Poderia Me AmarOnde histórias criam vida. Descubra agora