Prólogo

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Estávamos voltando de uma longa viagem. Aproximadamente seis horas dentro do carro se passaram. Conhecendo o trajeto, sabia que ainda faltavam cerca de duas horas até chegarmos em casa. A paisagem não era nada louvável, muito menos a companhia. Meus pais discutiam frenéticos por causa da crise de ciúmes que meu pai tivera durante as férias que passamos em família no sítio do meu tio Ben.
Deixe de ser idiota! Ele só estava sendo gentil—gritou minha mãe. Meu pai olhou pelo retrovisor e me perguntou:
Billy, você lembra daquela vez que chegou todo machucado da escola? Conte pra sua mãe. 
Eu havia dividido meu lanche com Ashley, e o Chase, namorado dela, não gostou—respondi entre os dentes.
Ouviu isso?—falou meu pai—O Billy só estava sendo gentil, mas apanhou feio.
Percorremos o caminho todo com aquela maldita discussão. Faltava apenas 90 quilômetros para chegarmos, e a gritaria continuava. Em um acesso repentino de raiva, gritei:
Chega! Mãe, você é uma idiota! Pare de ficar se defendendo como se estivesse certa, mostrando essa maldita superioridade falsa! Eu vi, eu juro que vi, e todos os meus primos também viram... 
O que você viu garoto?—perguntou meu pai. Respirei fundo, olhei para minha mãe e respondi:
Você estava... com o tio Ben, no celeiro. Todos estavam zombando dos dois. Quando vocês voltaram para casa era mais que evidente que algo tinha acontecido, a forma como o tio Ben olhava... ele te abraçava com a mão tão baixa. Eu estou cansado disso... por favor, parem de discutir.
Meu pai olhou severo para minha mãe. Ambos se calaram. 
Chegamos em casa. A discussão continuou frenética e hostil. Um mês depois o divórcio aconteceu. Meu pai ficou com nossa casa, que era da Vovó Hilda. Ela falecera há oito anos, então meu pai recebeu o imóvel como herança. Minha mãe conseguiu alugar uma casa no subúrbio, trabalhando como doméstica. Me mantive com meu pai, pois certamente minha mãe não conseguiria se manter e me sustentar. Não julgo nenhum dos dois, mas confesso que toda essa mudança estava sendo um porre.

Eu fui diagnosticado com fobia social após surtar durante uma aula de educação física. Todos juntos... quarenta alunos... se aproximando tanto... as palavras soavam dolorosamente em meus ouvidos. Dei um grito estrondoso e desmaiei. Depois disso passei a evitar contato físico. Sempre estava o mais afastado possível de todas as pessoas. Eu estava no último ano da escola, então já tinha que me preparar para o vestibular. Dezessete anos, e tudo o que eu queria era dormir e jamais acordar. 
Por que você não gostaria de acordar?—perguntou o psicólogo em uma de nossas consultas. 
O que você faz quando anda por muito tempo?—me preparei pra uma metáfora—Obviamente você procura um lugar para se sentar. É o que acontece comigo. Eu tenho que dar conta do vestibular, da escola, da minha família, oscilando entre minha mãe e meu pai, tendo que intermediar quando um deles precisa do outro. Eu daria tudo... tudo o que fosse preciso só pra descansar da vida. A vida é a coisa mais cansativa que existe. E a morte... o alívio de permanecer em um sono profundo e eterno.
Houve silêncio. Será que eu fora sincero demais? Ou talvez...
Sabe o que me motivou a ser psicólogo?—Perguntou—Eu tentei suicídio três vezes. Eu quase obtive sucesso nessa última, mas... 
Seu nome era Gustav, doutor em psicologia. Quem o via por trás daquela roupa elegante nunca imaginaria o que tinha por baixo daquela camisa social. A lateral de seu abdômen possuía uma cicatriz vertical enorme. 
O rim possui um fluxo sanguíneo extremamente alto. Mesmo que eu errasse o órgão, certamente acertaria uma artéria e sangraria até a morte—continuou contando—Escute, Billy, aqueles que já se aproximaram da morte são os que mais se esforçam para proteger os outros
Então vou tentar me matar—retruquei—se eu sobreviver serei um guardião e tanto.
Dr. Gustav sorriu e disse:
Você já morreu. Não há necessidade de morrer de novo.
O que? Eu não...
Sim, você já morreu... por dentro. Pessoas que têm pensamentos que denotam aceitação e anseio à própria morte geralmente já morreram psicologicamente. O corpo não sobrevive sem o espírito... se sua psiquê não responde ao corpo, ele deseja a morte completa.
Aquelas palavras me marcaram eternamente. Não foi algo que me motivou a melhorar, pelo menos não naquele instante. Muita coisa aconteceu até que eu pude entender essa frase.

Alguns meses depois, retornei à escola. Me sentei na arquibancada, ao canto, isolado, como sempre fazia. Me peguei observando os garotos normais correndo atrás de uma bola, cujo objetivo era simplesmente lançá-la entre duas traves verticais e uma horizontal, ligando as duas por cima. Futebol, um esporte um tanto quanto trivial. Me distraí com eles, mesmo sendo um esporte boçal. Aquilo me invejava tanto... eu queria muito poder ser rodeado de tantas pessoas sem sentir aquele aperto no peito. Estar sozinho faz bem pra minha saúde física, uma vez que minha mente desconta toda a pressão antissocial no meu corpo. Enquanto isso, minha saúde mental só decaía. Quando eu estava o mais distraído possível, senti duas mãos encostando ligeiramente em meus ombros. Dei um salto, assustado, e gritei. Todos olharam por alguns segundos, mas logo voltaram a jogar. Eu estava encarando uma garota, com a pele clara, cabelos negros enrolados, e olhos castanhos. 
Desculpe! Não foi minha intenção assustá-lo—disse a garota—Me chamo Clarisse, do segundo ano. Eu estava por perto no dia que você passou mal e...
Está tudo bem—falei—se eu estiver sozinho nada me acontece.
Ela deu um passo a frente, e eu dei um para trás. Clarisse continuou falando:
Não faz bem ficar sozinho. Você precisa de alguém, e eu quero ser essa pessoa. Você mantém sempre boas notas e é educadíssimo...
Escute. Não vou permanecer aqui por muito tempo. Criar laços com mais pessoas só vai dificultar isso. Eu não vou...
Ela me abraçou subitamente e sussurrou em meu ouvido:
Basta enfrentar seus medos, que tudo vai ficar bem...
Aquele abraço me trouxe uma certa calmaria. Era como se eu houvesse tomado um dos meus remédios, mas sem aquele efeito de sonolência... era algo tão natural. Após isso diminui um pouco minha resistência, mas ainda estava seco. Eu já estava decidido. Clarisse me deu o endereço de sua casa, já que eu não usava celular, nem tinha redes sociais. Não iria para casa dela de maneira alguma, então aquele papel seria inútil. 

Cheguei em casa e notei que meu pai não estava. Aquele momento seria mais que oportuno. 
Alô, pai? Quando chega em casa?—perguntei, ligando para ele pelo telefone fixo. Meu pai respondeu:
Vou dormir aqui. Estou com alguns conhecidos. Precisa de alguma coisa?
Respondi que não e desliguei o telefone. Peguei uma faca de açougue que tínhamos em casa. Antes dos meus pais se separarem, minha mãe cortava a carne com aquela faca sempre que ia fazer algo especial. Afiadíssima, de corte rápido, era tudo o que eu precisava. Tirei minha camisa e corri para o meu quarto. Posicionei a faca, com uma pequena distância de minha pele, na região lateral do abdômen. Estava muito ofegante. Os rins... o fluxo de sangue é enorme e a margem de erro é quase inexistente. Meu pai só me encontraria no dia seguinte, morto, pálido e frio. Não era momento para hesitação...  tudo ou nada... oito ou oitenta... vida ou morte. Enfiei aquela faca, o que demandou bastante força. A principio não sangrou, apenas doía muito. O segredo era retirar a faca. Não foi difícil porque a pressão sanguínea empurrava o objeto para fora. Quando retirei totalmente a faca, meu sangue jorrou escorreu de maneira rápida e constante. Minha boca estava muito seca e eu estava pálido. Aos poucos perdia minha consciência. Por fim me sobrou apenas a boa e velha imagem preta, o vazio, o nada.




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