II

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Calma, calma, me desculpe—falei—eu acordei no hospital e fugi pra...
Seu pai disse que você tinha morrido, como você veio parar aqui?—Clarisse perguntou enquanto vestia sua roupa rapidamente. A cicatriz no meu flanco era bem visível e servia como prova de que eu havia tentado suicídio. Ela ainda continuou:
Passou um mês desde que você morreu. Eu fui no seu velório, antes de levarem você pro necrotério. Seu pai permitiu que seu corpo fosse usado pelo hospital para estudo.
Isso explicava o cheiro horrível de formol e amônia. Respirei fundo e falei tudo o que acontecera. Não foi algo fácil de engolir, mas ver um morto retornar à vida já era o mais complicado de se acreditar.
Eu não posso voltar pra casa—expliquei—e você foi a única que estendeu suas mãos pra me ajudar. Clarisse, se você me deixar ficar... eu juro que serei eternamente grato e vou fazer de tudo pra te proteger. O que quiser... eu vou para o inferno por você!
Como vou esconder você aqui? Se meu pai te ver nós dois vamos morrer!
Só espere eu conseguir usar meus poderes de novo, e vou ficar invisível por um bom tempo. Eu preciso conversar com Evil...
Clarisse pensou um pouco e disse:
Eu já ouvi esse nome... Evil... isso! Sei de alguém que pode te ajudar.
Ela correu pela casa com euforia e logo depois voltou com roupas do irmão dela.
Vista-se, vamos encontrar uma amiga.
Coloquei uma calça jeans e vesti um moletom preto desbotado. Coloquei o capuz e fiz o máximo pra cobrir meu rosto. Andamos algumas quadras até chegar em uma casa com paredes pretas e visual, literalmente, gótico. Tocamos a campainha. Uma mulher, toda de preto, alta, com batom escuro e cabelo negro cuja franja caía nos olhos, nos atendeu. Era a mãe de Lana, a garota que Clarisse mencionara.
Entrem—falou a mulher. Quando passei por ela, senti um cheiro, exatamente igual ao cheiro do submundo, uma mistura de enxofre e incenso. Meu corpo se arrepiou totalmente.
Espere, garoto—disse ela—você... venha cá.
Me aproximei. Aquela mulher chegou a boca até meus ouvidos e disse:
Eu sei que você é um anjo-beta, sinto seu cheiro infernal... seja bem-vindo e traga a salvação para minha menina...
Clarisse me chamou, então me apressei um pouco, o que foi um alívio, já que estava um clima totalmente sinistro. Num quarto escuro encontramos uma garota baixa, de cabelos curtos de cor negra e olhos cinzentos. Sua pele era estranhamente pálida e sua voz soava como um sussurro.
Eu me chamo Lana, sou a prodígio dos mestres pagãos. Do que precisa, anjo-beta?
Sou Billy e a primeira coisa que quero saber é o que significa “anjo-beta”—questionei, afinal vinha com essa dúvida desde que estava no Mayhem. Lana se aproximou e respondeu:
Tire a camisa e vire-se—eu obedeci e me virei. Apenas algumas velas iluminavam aquele quarto. Na minha frente havia um espelho, e Lana segurava outro atrás de mim. Minhas costas possuíam marcas que se assemelhavam muito à tatuagens. Havia um cadeado no meio de um círculo. Dessa figura, desenhos de correntes saíam e terminavam na parte frontal do meu ombro.
Existem quatro espécies sobrenaturais, que vão além dos humanos—Lana me explicava—começando da mais inferior temos os Minions. São criaturas que se assemelham aos demônios e aos humanos simultaneamente. Eles sempre vêm para a terra com o objetivo de atormentar os humanos; depois temos os demônios, classe que se assemelha a animais e monstros. Geralmente ficam no Inferno ou no Mayhem, porque trabalham em prol do bom funcionamento do submundo. A sua classe, anjo-beta, é uma configuração pouco diferente. Eles se assemelham aos humanos e aos celestiais, possuindo entre si poderes e formas de atuação diferentes. Todos os anjos-betas possuem a Marca da Maldição, que sela os seus poderes. Um anjo-beta com o selo destravado pode ser tão poderoso quanto qualquer celestial. Os celestiais são seres supremos, enormes e extremamente poderosos. Alguns tomam configurações humanoides para pousarem na Terra sem destruí-la. Todos os celestiais que pousaram no nosso planeta causaram um alvoroço terrível, exceto os Seis Guardiões. Com o selo destravado, você terá um poder equivalente a esses celestiais.
Essa marca não é minha—falei—o anjo da morte, Death me deixou assim como castigo. Quando meus dias de vida se encerrarem, eu vou morrer e ele voltará.
Lana sorriu e retrucou dizendo:
Pobre inocente. Quando um anjo-beta passa sua marca, ele perde sua imortalidade e morre quando chega seu tempo. Quando Death te contou isso, ele estava dizendo que quando seu tempo de vida se encerrasse, você poderia, apenas se quisesse, transferir seus poderes a outro humano.
Por que só humano?—perguntou Clarisse. Lana respondeu:
Humanos são seres neutros. Qualquer coisa pode modificá-los.
Conversamos um pouco sobre todas essas coisas. Pude compreender como funciona o submundo e essas loucuras que eu já mais imaginei que existissem. Minha mãe era cristã e meu pai era budista, mas eu nunca acreditei em nenhuma das duas crenças. Aos treze anos me autodeclarei pagão, porque adorava tanto mitologia nórdica como mitologia grega. Ao longo do tempo defini que nenhuma crença possuía lógica. Criacionismo e qualquer pensamento filosófico espiritual que caracterizava criaturas inexistente e/ou divinas eram inválidas por imediato. Essa ideia de ateísmo foi totalmente desconstruída após minha ida ao submundo. Aquela garota parecia ter um conhecimento inigualável, e era evidente que ela possuía um grande vínculo com Clarisse. Esse laço que ambas compartilhavam seria útil para mim.
Evil é um demônio, então...
Lana me interrompeu e corrigiu dizendo:
Ele não é um demônio. A sua aparência é uma fachada. Evil é o quinto celestial mais poderoso que existe. Vou te contar a história dos celestiais e...
Lana, o Billy precisa de outra coisa, no momento, e eu não posso demorar. Meu pai vai me matar—disse Clarisse.
Preciso falar com Evil. Os grifos infernais acabam muito rápido e eu preciso me manter invisível por mais tempo. Já que Death “morreu", apenas ele sabe os segredos desses poderes estranhos—expliquei. Lana assentiu. Ela arrastou sua cama até o canto do quarto e pegou um giz. Rapidamente desenhou um pentagrama, uma estrela de cinco pontas com um pentágono no centro, no meio do quarto e colocou uma vela em cada ponta.
Billy, fique no meio.
Fiz como Lana mandou. Ela abriu um armário, que eu acreditava ser um simples guarda-roupa, e pegou uma machadinha. Daquele mesmo lugar, a garota lançou-a em minha direção. Não tive reflexo suficiente para desviar, então meu pescoço foi cortado. O sangue fez-se como quando se corta uma tubulação de esgoto. O pentagrama todo foi manchado com aquele vermelho carmesim. Instantaneamente as chamas das velas tomaram um tom esverdeado e os traços feitos em giz começaram a brilhar. Clarisse se ajoelhou e cobriu os olhos desesperada. Aparentemente ela pensava que minha imortalidade era limitada. Infelizmente a minha parte imortal não acompanhava a invulnerabilidade sensorial, então eu sentia uma dor imensurável. Imaginem ter seu pescoço cortado ao ponto de sua cabeça se desprender do corpo, sem poder morrer, sentindo o fluxo do sangue ainda quente ascender com ímpeto e voar para fora de suas artérias e veias. Não há nada que se assemelhe à essa dor, afinal os mortais possuem uma vantagem: a morte pode interrompê-la. Em segundos, com meu corpo caído no chão, parecia que minha cabeça e a base de meu pescoço se transformaram em um imã. Senti os ossos da espinha se ligando novamente, a medula se regenerando e os ligamentos se entrelaçando novamente. Por fim, uma pele nova e saudável se criava por cima dos músculos recém-regenerados. Me levantei.
Em breve Evil atenderá ao chamado—disse Lana—você deu o aproximadamente dois litros de sangue. Comparado a isso, meus sacrifícios não valem nada.
Foi dito e feito. Em instantes, Evil surgiu da escuridão e estava vindo em minha direção.
Seu sangue é incrivelmente mais saboroso que o sangue mortal, Billy—disse ele enquanto lambia o meu sangue do chão—por que me chamou garoto?
Não estou com tempo para matar pessoas, já que estou sem os grifos e não posso ser visto—respondi—eu preciso de mais grifos infernais.
Evil gargalhou exibindo seus dentes amarelados e falou:
Você é muito ingênuo garoto. Tudo tem seu preço. Eu jamais te daria grifos infernais de graça!
Eu me ofereço então—gritou Lana—quanto mais anjos-betas vocês possuírem para servir ao submundo, mais poderoso se torna o Mayhem. ME TRANSFORME EM UM ANJO-BETA!

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