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Eu sentia um calor imensurável, algo completamente estranho pra mim, que havia morrido, principalmente porque eu era ateu. Até abrir os olhos, eu não acreditava em céu ou inferno, mas... aquilo que eu vi após ter morrido, era literalmente infernal. Eu estava sendo carregado por um brutamonte vermelho de pele áspera e chifres exuberantes por um chão incandescente. Eu não conseguia me desesperar, não sentia medo, nem havia surtado. Dentro de mim parecia que tudo se havia extinguido.
Pra onde você está me levando?—perguntei. O monstro me respondeu:
Lorde Evil quer falar com você. Sinta-se privilegiado. As almas estão sendo levadas para o abismo infernal, enquanto você está indo para o Mayhem, o único lugar pacífico no submundo.
Não era exatamente como as diferentes mitologias representavam o inferno, mas de certa forma a descrição física era bem coerente. Era surreal ver pessoas andando como zumbis e se jogando de um enorme penhasco, enquanto demônios ao redor espetavam o flanco dos derradeiros com lanças pontiagudas.
Você não vai me espetar, ou vai?—perguntei. O demônio respondeu:
O chefe me mataria se eu fizesse isso.
Por fim chegamos em um lugar pouco mais alto que antes, com a mesma atmosfera quente e temerosa, porém com um visual castlevaníaco. Estava diante de um castelo negro com torres enormes, rodeados por demônios armados até os dentes. Entramos. Um tapete vermelho conduzia os que vinham chegando até um trono, que parecia ser construído com ossos, onde se assentava uma criatura horrenda. Seu corpo era robusto e sua pele era avermelhada. Ao invés de cabelos ele possuía dois chifres pontiagudos em espiral. Suas vestes pareciam armaduras de rochas ígneas e seus pés eram enormes, com quatro dedos bastante espaçados. O demônio que me carregava jogou-me no chão e foi embora.
Você é o diabo?—perguntei. A criatura se levantou do trono e disse:
Alguns humanos gostam de me chamar assim, mas parece algo “malvado" demais. Eu sou o mestre da benignidade, Evil, aquele que guia as pessoas ao seu destino final.
Era bem irônico ele carregar a alcunha de Evil, palavra em inglês que significa mal, e se autodenominar "o mestre da benignidade". O quão benigno ele poderia ser?
Eu morri, certo? O que estou fazendo aqui? Os mortos estavam pulando naquele abismo enorme—perguntei. Evil respondeu enquanto caminhava em minha direção:
Aqui no submundo há três divisões. A primeira divisão, a camada mais profunda, chama-se Inferno. É onde aqueles cuja vida foi normal e sem propósito são destinados; a segunda é onde você está. Esse é o Mayhem, onde pessoas que têm um potencial notório se tornam demônios ou anjos-beta; e a última camada—ele apontou o dedo para o alto—é o Nethearth, onde aqueles que são julgados como pessoas más se tornam Minions e atormentam os vivos.
Isso não explica o motivo de eu estar aqui.
Você foi acusado de um crime da morte. Esse é seu julgamento. Death, entre.
Pela porta do castelo entrou um homem magrelo, aparentemente idoso, vestido em um manto negro.
Cada ser humano tem uma data de validade.—explicou Death—Meu trabalho é fiscalizar essa data e matar aqueles que já estão "vencidos". Você, Billy, morreu muito antes da sua data. Seu óbito foi no dia três de dezembro de 2020, com dezessete anos. Seu tempo de vida se estenderia até seus oitenta e três anos.
Ninguém pode mudar a morte—disse Evil—e o suicídio é abominável, a menos que seja o desejo do anjo da morte. Death escolherá sua punição.
Death sorriu e disse:
Sua punição será ficar no meu lugar. Estarei de férias enquanto você retornará à vida e irá trabalhar em meu lugar até vencer seu tempo de vida.
Você receberá todos os poderes de Death, incluindo a imortalidade, regeneração e outros—completou Evil. Que tipo de punição era essa? Ser imortal? Matar pessoas? O que seria difícil nessa merda?
Alguns poderes estarão bloqueados, até você aprender a usar as capacidades básicas. Quando isso acontecer, enviaremos a Chave—explicou Death—para matar alguém você precisa escrever o nome completo em seu corpo e pensar no rosto da pessoa. A escrita pode ser feita com qualquer coisa que marque a pele. Você saberá que o efeito foi completo quando sua pele se queimar e a escrita se tornar grifos infernais. Você pode escrever a causa da morte logo após o nome. O indivíduo irá morrer cinco segundos após o nome ser validado.
E sobre os outros poderes que já estão liberados?—perguntei. Evil respondeu:
Será possível ver o nome e a data de validade de qualquer pessoa, pirocinésia e invisibilidade limitada. Os grifos infernais são criados a partir do número de pessoas que você mata. A invisibilidade consumirá esses grifos e quando eles acabarem você voltará ao normal. Por enquanto é tudo que poderá usar.
Não precisa necessariamente matar aqueles que estão acabando o prazo de validade. Se precisar, ou quiser, pode matar qualquer um. Quanto mais pessoas matar, mais poder você terá—disse Death.
Vocês são loucos!—gritei. Foi a última vez que estive no Mayhem. Em um piscar de olhos, acordei em um lugar frio e escuro, não sabia onde estava. Provavelmente haviam me enterrado. Comecei a me debater lá dentro. O barulho era metálico, pouco abafado. Um tempo depois, senti algo me puxando, como se eu estivesse em uma plataforma móvel. Um zíper se abriu e vi uma luz. Um homem vestido com jaleco e luvas de látex estava diante de mim. Quando me levantei ele deu um grito e tentou sair daquela enorme sala. Era um necrotério.
Ei, fique calmo, eu não estava morto—Tentei acalmá-lo, mas aquele homem não parava de correr e clamar por socorro. Corri para a mesa, onde estavam os utensílios, peguei o bisturi e olhei para o homem. Vi em cima de sua cabeça seu nome, Rodrigo Gulart, e sua data de validade, “+22 anos". Cortei meu antebraço com o bisturi escrevendo seu nome e a causa da morte: “parada cardíaca". O ferimento sangrou um pouco, mas logo incandesceu. As letras viraram símbolos estranhos de cor negra. Contei cinco segundos. Rodrigo se debateu um pouco e caiu no chão, morto. Ouvi passos, haviam pessoas se aproximando. Eu possuía apenas um grifo infernal, então a habilidade de invisibilidade duraria pouco. Não fazia ideia de como faria pra ficar invisível, então entrei em desespero. Me escondi atrás de uma bancada. Três pessoas chegaram para ver o médico legista que morrera. Olhei de relance e vi a mulher. Andréia Oliveira, tinha mais treze anos pela frente. Escrevi seu nome com o bisturi. Ela morreu. Os outros dois não conseguiam entender absolutamente nada, o que seria cômico, se não fosse trágico. Eles não podiam me descobrir de forma alguma. Eu não conseguia ver o outro cara, então decidi matar apenas um e correr invisível. Davi Gomes, mais trinta e nove anos de vida, morreu de parada cardíaca. Evil tinha me explicado que as causas da morte deveriam ser biologicamente possíveis e coerentes. Nesse caso, certas causas demandariam um tempo maior e alguns fatores poderiam impedir a morte. Por isso, eu usava a parada cardíaca em todas as mortes com urgência. Senti algo nas minhas costas pulsando, como se houvesse um membro móvel. Tentei contraí-lo, e funcionou. Fiquei invisível. Soube disso porque eu próprio não conseguia ver minha mão. Corri e saí para o lado de fora. Estava no hospital das clínicas, há 12 quilômetros da minha casa. Lembrei do endereço de Clarisse, que ficava na rua de trás do hospital. Corri imediatamente, antes que o efeito dos grifos acabasse. A casa não tinha muro e as janelas estavam abertas. Fui andando sorrateiramente procurando o quarto de Clarisse. Vi o uniforme da nossa escola pendurado e deduzi que aquele fosse o quarto dela. Entrei. Peguei uma toalha rosa em seu guarda-roupa e enrolei na minha cintura, já que assim que a invisibilidade acabasse eu ficaria totalmente nu e exposto. Me sentei, encolhido em um canto para ninguém desconfiar da “toalha flutuante". Alguns minutos depois, Clarisse entrou no quarto. Ela estava com o fone no ouvido e parecia estar bem distraída. Ela fechou a porta, tirou o fone e se despiu. A invisibilidade acabou. Clarisse viu meu vulto de relance e gritou assustada.
O que diabos você tá fazendo aqui?!

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