Que nem miojo

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Eu o inventei. Pelo menos é isso que sempre disse a mim mesma. A mistura de
todas as adorações da infância combinadas em um cara perfeito. O problema é
que eu estava errada. Porque agora mesmo Max está sentado exatamente do lado
oposto de mim no pátio da escola, lendo nosso livro de psicologia e pausando a
cada poucos minutos para digitar alguma coisa no celular. Está usando uma
camiseta cinza, e quero ir até ele e sentar no seu colo.
— Organize as ideias — sussurro, ajeitando uma mecha de cabelo atrás da
orelha e olhando para o material sobre a história dos Estados Unidos que recebi.
Não consegui prestar atenção em uma única linha da página. O que era aquele
artigo que li por cima do ombro do meu pai alguns dias atrás? Como a internet
conectou nosso mundo tão completamente que diminuiu os seis graus de
separação para quatro? Eu provavelmente o vi no Facebook… Exceto pelo fato
de que tenho sonhado com ele muito antes de saber que o Facebook existia.
Quando era pequena, eu tinha pavor absoluto de sangue, o que era
inconveniente, já que sofria de sangramento nasal crônico. Meu pai e eu
tínhamos uma palavra que usávamos para explicar o sentimento que eu tinha
sempre que via sangue de qualquer tipo, na vida real ou nos filmes. Que nem
miojo. Porque uma hora eu estava bem e então, na outra, alguém arranhava o
joelho ou perfurava o dedo com um estilete na aula de artes, e eu sentia como se
todos meus ossos tivessem sumido. Como se eu fosse apenas um saco de pele
chacoalhando ao vento, ou um daqueles bonecos de posto esquisitos que
colocam do lado de fora de revendas de automóveis. Em alguns momentos em
que eu não estava que nem miojo, eu fazia uma performance para meu pai,
mantendo os braços acima da cabeça e mexendo os quadris como um golfinho.
Que nem miojo é como me sinto neste instante, mesmo sem haver nenhuma
gota de sangue em vista. E estou determinada a não me sentir dessa maneira pelo
resto do ano.
Não seja esquisita não seja esquisita não seja esquisita, repito para mim mesma enquanto atravesso o que parece ser uma jornada épica pelo gramado
bem cuidado. Há milhares de frases de apresentação rodando na minha cabeça.
Frases que vão me fazer parecer esperta e legal, a femme fatale dos sonhos de
alguém, o que, tecnicamente, eu sou. Dele. Como “Impressionante conhecer
você na realidade” ou “Teve alguma fase rem boa ultimamente?”. Max vai sorrir
e me puxar para perto dele, e vamos nos beijar, e ele vai explicar tudo e nunca
mais vai me soltar.
— Oi — é tudo que consigo falar na verdade, olhando fixamente para Max e
me balançando um pouco nos calcanhares. Parece que cada nervo do meu corpo
está gritando, e tenho vontade de correr muito rápido para muito longe.
Max não se apressa em olhar para cima, dando a impressão de que me viu
encarando-o em silêncio do outro lado do pátio por todo esse tempo. Ele termina
de marcar uma frase com um cuidado exagerado e então coloca o livro ao seu
lado.
— Oi — ele responde, enfim me olhando diretamente e pousando as mãos
no colo. Tem alguma coisa por trás do seu olhar que não consigo decifrar e que
nunca vi antes. Tem uma formalidade nele. É quase… desafiadora.
De repente, a ideia me ocorre de que eu talvez esteja pirada de fato, como a
senhora sem-teto que costumava ligar para nosso apartamento todo sábado de
um telefone público da esquina e perguntar quais eram os pratos especiais do
almoço. Se estivesse de bom humor, eu fazia a vontade dela:
— Massa ziti ao forno! — eu proclamava.
— Está boa hoje? — ela perguntava. E eu respondia:
— Ah, muito, nosso chef é famoso por ela! — Enquanto meu pai me lançava
um olhar cético por cima de um de seus periódicos de medicina.
Mas agora que estou parada na frente de Max, ele é tão familiar que é quase
opressor. Esse não é um rosto que copiei da internet e colei com Photoshop no
meu subconsciente. Esse é o cara que conheço e amo. O meu cara. Ele é meu, e
eu sou...
— Você precisa de alguma coisa? — Max inclina a cabeça para o lado.
Engulo em seco.
— Você… você se lembra de mim? — enfim pergunto. E, enquanto procuro
no seu rosto sinais de reconhecimento, algo como o que eu pensei ter visto na entrada da sala de aula, a sensação é de que meu coração afundou até o
estômago, e as laterais do estômago estão se dobrando em torno dele como o
caramelo em torno de uma maçã do amor.
É neste instante que um borrão de cabelos negros se inclina na parte de trás
do banco de Max, e um par de braços bronzeados e tonificados enlaça o pescoço
dele. Os braços pertencem a uma garota, e ela o está beijando.
— Olá — a garota-que-aparentemente-também-beija-Max diz. — Quem é
você?
Quem é você?, quero gritar. Sinto lágrimas se formando por trás dos meus
olhos, e estou fazendo todo o possível para mantê-las ali.
— Ela é nova — Max interfere. Por um momento, seu rosto exibe um
pequeno sinal de compaixão, que é substituído de imediato pela mesma
assustadora expressão calma. — É Alice, não é? — ele diz. A garota-que-
aparentemente-também-beija-Max ainda está pairando sobre o banco, seus
cotovelos apoiados nos ombros de Max, seu belo rosto ao lado do dele.
É Alice, não é?
— É — consigo falar, e estendo a mão. A garota a aperta, sorrindo
educadamente.
— Sangue novo. — Ela assente com a cabeça. — Sou Celeste.
Ai, Deus. Celeste? Nomes como Celeste jogam terra em nomes como Alice
na pracinha. Nomes como Celeste roubam os garotos que iam ao baile do
colegial com nomes como Alice. Nomes como Celeste estão aparentemente
namorando os namorados imaginários dos sonhos de nomes como Alice.
— Que nome bonito — é tudo que digo.
— Obrigada. Como vocês dois se conhecem? — Celeste pergunta.
Nem Max nem eu falamos. Não aguento olhar para os dois juntos mais
nenhum segundo, então apenas encaro o chão, esperando pela resposta dele. E,
quando ela vem, só fecho meus olhos por completo.
— Nós não nos conhecemos — Max diz calmamente.
Agora não estou me sentindo mais que nem miojo. Agora sou um fiapo de
macarrão que foi deglutido por uma mãe pássaro, regurgitado e dado para os
filhotes no ninho. Meu cérebro sabe que é completamente idiota me sentir
rejeitada por alguém que não tenho certeza se conheço… Mas meu coração não parece ter captado a mensagem ainda.
Ainda bem que somos interrompidos pelo que soa como um ar-condicionado
quebrado vindo na nossa direção, e me viro para me deparar com Oliver
acelerando pelo caminho em pé num Segway verde-limão. Por todo o pátio, as
pessoas ou estão rindo ou revirando os olhos. Oliver apenas sorri.
— Alice! — ele grita ao se aproximar. Ele circula em torno de mim enquanto
pergunta: — Quer uma carona?
— Achei que você tinha tido seus privilégios de veículos revogados — digo.
— Ah, aquela situação. Acontece que, pelo artigo sétimo, seção dois, do
livro de normas da Bennett Academy, alunos não podem ser proibidos de usar
um veículo de transporte pessoal se puderem fornecer documentação de uma
deficiência que requeira tal veículo, seja física, mental ou cognitiva.
— Bom, isso não deve ser um problema — Max bufa. Então, sem pausar, ele
diz: — Como você conhece a Alice?
— Quando você ficou tão cruel? — deixo escapar. Assim que falo, percebo
quão maluco deve soar. Mas Oliver está distraído, e Celeste está rolando alguma
coisa na tela do celular.
— Max Wolfe, brilhante como sempre — Oliver diz. — Isso me lembra algo
que meu meio-irmão de sete anos diria. Não fique ofendido; ele é maduro para a
idade. Eu conheci a bela Alice Rowe na sala do reitor hoje de manhã. — Ele
para o Segway e fica se apoiando nele, olhando fixamente para mim de maneira
admiradora. — Você está linda, aliás. Esta é a cor natural do seu cabelo? — Ele
o alcança sem esforço e deixa uma mecha do meu cabelo loiro-escuro deslizar
através de seus dedos.
Apesar de saber que é tudo uma brincadeira, ainda fico corada quando faço
que sim com a cabeça.
— Por que você se importa? — Max interrompe.
— Tudo bem — Celeste pula no meio, pegando a mão de Max e lhe dando
um puxão. — Sei que vocês dois não conseguem se aguentar, mas estão
particularmente mal-humorados hoje. Vamos pegar um bagel, seu bebezão.
Max cede, mas se levanta devagar, ainda franzindo o cenho para nós.
— E que tal uma carona? — Oliver pergunta de novo.
— Eu adoraria — digo enfaticamente. Ele estende a mão como se estivesse me conduzindo para uma carruagem puxada a cavalos, e me ajuda a subir no
Segway. Conforme aceleramos pelo pôr do sol metafórico, espio além dos
cachos flutuantes de Oliver para ver Max se afastando com Celeste, seu rosto
virado para trás, olhando para mim.

O garoto dos meus sonhos - Lucy KeatingOnde histórias criam vida. Descubra agora