Law & Order: Unidade de Cookies Especiais

104 13 0
                                    


Acontece que não posso esperar passar o ano letivo assim. Desejando um cara
que eu sinto que, no fundo, no fundo, realmente conheço, mas que na verdade
age como se eu não existisse. Eu poderia muito bem ser o personagem principal
em algum desses filmes com perseguidores esquisitos no Lifetime. Imagino o
trailer na minha cabeça. Em um mundo em que nada faz sentido, até onde ela irá
para conseguir o garoto dos seus sonhos — literalmente?
Então é óbvio que tenho que fazer algo a respeito, o que me traz até aqui, até
o refeitório da Bennett. Na verdade, Bennett não tem um refeitório. Tem um
salão de jantar. Janelas que vão do piso ao teto, longas mesas de carvalho e
imensos lustres. Há opções vegetarianas, veganas e sem glúten. Tem uma
máquina de waffle no café da manhã, uma prensa de panini no almoço e mais
tipos de cereais do que você encontraria numa fábrica da General Mills. O que é
ainda mais impressionante é o fato de que servem jantar. Então você pode ir
para aula e depois fazer esportes, e em seguida fazer um lanchinho antes de virar
a noite na biblioteca. Se é esse o tipo de coisa que você gosta. Um corpo são é
uma mente sã!, proclama uma placa acima da estação de bagels. Mas agora nem
estou com fome. Agora estou aqui a negócios.
A ligação que recebi de Sophie durante o horário livre é o que realmente me
pôs em ação.
— Pesquisei sobre ele! — ela anunciou com orgulho quando atendi o
telefone.
— Quem? — perguntei.
— Quem você acha? — ela diz. — O Garoto dos Sonhos, é óbvio. Nós não
podíamos antes, porque só tínhamos umas informações vagas: nome, idade,
altura e… gostoso. Mas agora nós sabemos muito mais! Sobrenome, cidade
natal, até escola!
— E o que você descobriu? — perguntei, meu coração acelerando um pouco.
Sophie era totalmente genial.
— Temo que não muito — ela disse, a voz assumindo um tom monótono. —
Pelo menos nada que ligue você a ele. Ele frequenta a Bennett desde o jardim de
infância, é um atleta da escola, capitão do time de futebol, o que é uma coisa
bem importante para um aluno do terceiro ano, aliás. E passou a primavera do
segundo ano na Costa Rica, algum tipo de programa de intercâmbio estudantil.
Bastante impressionante.
— Que bom que você gostou dele — resmunguei.
— Você pode deixar de gracinhas, por favor? — Sophie disse. — Acabei de
dar uma de Nancy Drew por sua causa.
— Desculpe, Soph, você sabe que eu valorizo isso. Só estou desapontada.
Estou louca para descobrir como eu o conheço. Principalmente depois que,
apesar de todo meu esforço, ele deixou bastante claro que não sou nada além de
uma garota nova que surgiu na aula de psicologia.
— Você está se aproximando — Sophie disse. — Não perca a esperança.
Agora, se você me dá licença, a professora Tassioni está me olhando feio.
— Onde você está? — pergunto, rindo.
— Na verdade, estou na primeira fila da aula de inglês — ela disse. Então
em resposta a uma voz no fundo, seu tom se tornou levemente hostil. — Tá
bom! Caramba! O mundo não começou e acabou com Jane Austen, sabe… —
Seguido de um clique. Enfio o telefone de volta na bolsa com um sorriso triste e
tento ignorar a dor no fundo do estômago. Sophie é ousada e não tem remorso.
Mas ela também é o tipo mais leal de pessoa que existe. Eu sinto muita falta dela
para sequer pensar a respeito.
E, por mais que eu valorizasse seu auxílio, não tinha me ajudado a chegar a
lugar nenhum. Então tenho procurado por Max o dia inteiro, e finalmente o
rastreei no jantar. No momento, o Garoto dos Sonhos está pegando um prato e se
direcionando para a fila de comida, e minha missão hoje é ver o que ele come.
Porque, se conseguir descobrir se ele compartilha os mesmos gostos e desgostos
do Max dos Sonhos — ódio por coentro, amor por hambúrgueres, ambivalência
quanto a doces em geral —, vou saber se estou mesmo sonhando com uma
pessoa real… E então talvez eu consiga descobrir por quê. Talvez eu consiga
descobrir o que tudo isso tem a ver com esse lugar misterioso cds e aí saiba oque fazer a respeito disso.
— Hummmm! — digo com entusiasmo demais, seguindo bem ao lado de
Max na fila e lendo o cardápio. — Noite brasileira. — Minha escola anterior
tinha dois tipos de comida: comestível e não comestível. Este lugar é
simplesmente surreal.
Max só acena com a cabeça enquanto coloca um filé em seu prato, e sequer
ergue os olhos.
Bato os dedos em minha bandeja com nervosismo e a empurro pela fila,
sentindo alívio ao chegar às bananas fritas. Aqui está. Minha “entrada”. Uma
vez, quando eu era pequena, meu pai teve que viajar para uma conferência e me
deixou sob os cuidados de uma brasileira que morava no apartamento de baixo.
Eu me sentia muito bem com aquela situação e planejava assistir a todos os
programas de tv que meus globos oculares aguentassem antes de derreter no meu
crânio. Mas Beatriz era surpreendentemente rigorosa e, para piorar a situação,
toda noite ela preparava bananas fritas com carne moída temperada. Eu sorria
enquanto mastigava, depois cuspia tudo no guardanapo e dava para Jerry
debaixo da mesa quando ela não olhava.
Eu ia dormir à noite com uma fome imensa e uma saudade enorme do meu
pai.
Mas, nos meus sonhos, Max sempre estava lá.
— Na verdade, bananas fritas são bem boas sozinhas — ele dizia, enquanto
nos sentávamos em uma árvore na floresta Amazônica, assistindo a um pôr do
sol verde-limão. — Você já provou com canela e açúcar mascavo? Aqui. — Ele
colocou uma na boca e passou para mim um saquinho de papel marrom, sorrindo
enquanto eu me entupia com nacos gordurosos da fruta. E então pulamos para
baixo para explorar e acabamos descobrindo novas espécies de peixe que tinham
pele em vez de escamas.
— Você já comeu isso com canela e açúcar mascavo? — pergunto,
apontando para as bananas com uma colher e olhando para Max com o canto dos
olhos. Por favor, diga que sim.
— Não — Max responde casualmente. — Fica bom? — Mas ele nem espera
pela minha resposta e segue para a próxima ilha de comida.
— Sim, ficam, na verdade — digo para ninguém enquanto meu corpo murcha. — Obrigada por perguntar.
Eu o sigo até a ilha de refrigerantes, onde ele não pega um refrigerante, mas,
em vez disso, enche seis copinhos da cafeteria com água gelada, que ele
organiza em uma fileira em sua bandeja. Não consigo deixar de fazer uma
careta. Tão chato. Tão não Max.
— E a Amazônia? — insisto. — Já esteve lá? — Max enfim olha para mim,
mas a expressão em seu rosto não é exatamente o que eu esperava. É
desarranjada, não gentil. Desvio o olhar, colocando um copo embaixo da garrafa
térmica de leite e pressionando a alavanca com um pouco de força demais. Leite
achocolatado se espalha por toda minha bandeja. Suspiro. — Acho que estou
prestes a descobrir qual o gosto de bananas com chocolate. — Sorrio debilmente.
Max ainda está olhando para mim com o cenho franzido, mas dessa vez juro
que tem um minúsculo vestígio de sorriso desabrochando em seus lábios. Como
se ele estivesse mordendo dentro da bochecha para não rir.
— O quê? — pergunto.
— Nada. Você faz muitas perguntas — Max diz.
— Amazônia ou nada de Amazônia? — pergunto de novo.
Ele começa a pegar os talheres:
— Nunca estive.
— E quem sabe Tailândia? Ou Egito?
— Não mesmo. — Ele já levanta sua bandeja de novo, assentindo com a
cabeça para uma mesa de jogadores de futebol que fazem gestos, chamando-o.
Respiro profundamente, tentando pela última vez.
— Nem eu — digo. — Mas o Metropolitan Museum of Art, o Met, tem uma
excelente tumba egípcia… Já fui lá uma vez. — Mexo em uma banana
mergulhada em leite achocolatado por um segundo antes de olhar de volta para
ele. — Já foi?
Max baixa a bandeja com um pouco de grosseria demais. Os talheres batem
contra o prato, e agora as pessoas estão olhando na nossa direção, e as conversas
se tornaram sussurros. Tenho certeza de que todo mundo quer saber por que um
dos caras mais populares da escola está olhando para a nova garota aleatória
como se ele quisesse esmagá-la como uma mosca com um pedaço de jornal
enrolado.
— Eu só estava… puxando assunto… — sussurro. — Desculpe.
Max balança a cabeça, inspirando fundo.
— Não. Eu sinto muito. Eu só estou com muita fome, pouco açúcar no
sangue e um treino pesado hoje…
Ele pega o guardanapo em sua bandeja e estende para mim.
— Você pode precisar disso. A gente se vê na aula.
Meu rosto queima enquanto pego o guardanapo, secando minha mão nele e
depois usando-o para secar minha bandeja com leveza. Sinto dúzias de olhos se
afastando de mim devagar, e as conversas no salão são retomadas. O que eu
estava fazendo? Porque só o que de fato consegui foi afastar uma pessoa de
quem estava tentando me aproximar, que muito claramente não é a pessoa que
eu quero com tanta força que seja. Quantas vezes ele precisa me esculachar antes
de eu enfiar isso na minha cabeça? Max não é o mesmo cara com quem sonho.
Não é possível.
— Alice Rowe? — A voz cansada de uma mulher soa pelo alto-falante da
escola. — Alice Rowe, poderia, por favor, se dirigir à ilha de sobremesas do
salão de jantar? Eu repito, Alice Rowe, ir para a seção de sobremesas do salão de
jantar. Obrigada.
Confusa, passo a mão pelo cabelo e sigo as instruções. Oliver está encostado
próximo aos doces, braços cruzados e queixo apoiado sobre um punho fechado,
analisando as guloseimas como se a decisão fosse afetar o resto de sua vida.
— Eu quero um brownie ou um frozen yogurt? — ele pergunta em voz alta,
então se vira para me olhar, sobrancelhas erguidas, como se fosse uma questão
perfeitamente natural.
— Você acabou de mandar me chamar? — pergunto. Ainda estou cem por
cento confusa, mas também aliviada.
— Você tem razão, frozen yogurt é coisa de menina — ele diz.
— Como você acabou de me chamar se está parado aqui? — digo.
— Frozen yogurt é para criancinhas, mas tenho a sensação de que um
homem consegue se safar com um sundae. Não?
— Oliver.
— Escolha uma massa folhada, Alice — ele diz. — Então vamos conversar.
Alguns minutos depois, estamos nos olhando por cima do maior sundae que já vi na vida, uma torre alta com tudo em que conseguimos pôr as mãos: balas de
goma, granulados, pedaços de cookie, calda quente e uma dose gigantesca de
chantili.
— Roberta — Oliver diz de boca cheia. — A recepcionista do reitor. Ela
esconde bem, mas ela me ama. Mandei uma mensagem de texto para ela e pedi o
anúncio no alto-falante. Você parecia estar precisando.
Não consigo deixar de notar que essa é a segunda vez que Oliver me salva
quando estou “precisando”. Realmente espero não precisar de resgate outra vez.
— Por que você tem o celular da Roberta? — pergunto, pegando uma
colherada praticamente só de chantili.
— Por que não teria? — ele pergunta.
Suspirei com desdém.
— Não consigo acreditar que você me chamou pelo alto-falante para as
sobremesas. Eu me senti num episódio de Law & Order: Unidade de Cookies
Especiais.
Oliver apenas sorri.
— Bom, até eu chamá-la, pensava que você estava em um episódio da
novela The Young and the Restless. O que houve com o Capitão Babaca? — Ele
acena a cabeça depressa na direção da entrada, onde Max está deixando a
bandeja.
Apenas dou de ombros e pego outra colherada de sorvete, que demora uma
eternidade para descer pela garganta. Como posso contar a ele que pensei que
conhecesse Max de uma vida inteira de sonhos, mas que de alguma forma
consegui imaginar tudo? Que mesmo que sinta que realmente conheço Max, ele
não é o Max que conheço. Que o Max que conheço… bom, esse Max nem
sequer existe.
— Não quer falar disso? — ele pergunta.
Apenas aceno com a cabeça.
— Nesse caso, posso lhe dar uma carona de Segway até sua casa?
Acontece que Oliver vive a quatro quadras da casa da vovó, que sei que deveria
começar a chamar de minha casa. Mas minha casa é um apartamento que ocupa
um andar inteiro e dá direto na 119
a avenida, um estranho híbrido de covil adolescente e caverna masculina permanente. Não um labirinto infinito de
carpetes orientais e pinturas com molduras douradas pesadas. Minha casa fica
perto de restaurantes que abrangem seis diferentes países em um raio de uma
quadra. A quadra da minha avó tem um lugar chamado Lençóis Finos de Beacon
Hill.
— Tem alguma coisa mais ridícula do que um comércio especializado em
lençóis de quinhentos dólares? — pergunto a Oliver quando passamos pela loja a
caminho de casa. — Isso transforma o sono, uma das nossas necessidades mais
básicas, em uma coisa elitista. — Estou caminhando com Frank ao meu lado, e
Oliver está levando seu Segway, porque ficou sem bateria.
— Quer mesmo falar de ridículo? — ele pergunta. — Fui à loja da esquina
comprar leite pro meu cereal semana passada, porque meus pais se esquecem de
que preciso comer às vezes, e a atendente disse que eles tinham apenas leite
orgânico de ovelhas. Ela me disse isso com uma cara completamente séria. Eu só
me virei e fui embora.
— Seus pais parecem ocupados — digo.
— Eles têm sua própria empresa empacotadora, então estão sempre fugindo
para a China no último minuto. Não ficam muito por perto.
— Você se sente sozinho? — pergunto.
— Claro, mas um cara acha maneiras de se divertir. — Ele me lança um dos
seus charmosos sorrisos tipo Oliver. — Como ir mal na escola e se meter em
problemas o tempo todo.
— Entendo — digo. — Minha mãe foi embora quando eu era pequena, e
meu pai não é muito falante, então desenvolvi uma imaginação bastante ativa.
Espero que ele se sinta desconfortável depois da minha confissão, ou que
pergunte aonde minha mãe foi. Mas, em vez disso, ele apenas diz:
— Tipo o quê?
— Sei lá, eu era uma criança curiosa — digo.
— Dê um exemplo — ele pressiona.
— Não posso te contar! — choramingo. — É vergonhoso.
— Alice Rowe, tão misteriosa — ele tira sarro. — Você poderia ser uma
espiã russa, até onde eu sei. Você já roubou minha identidade?
— O.k., tudo bem! — digo quando paramos em uma faixa de pedestres. Um homem levando um par de poodles para passear encara o Segway de Oliver.
Oliver apenas acena um “olá” com a cabeça. — Por exemplo, eu costumava
seguir nosso cachorro Jerry pela casa como se estivéssemos em um desses
documentários do National Geographic, narrando cada movimento dele no
gravador antigo do meu pai. Ele é um buldogue, e eles não são exatamente
ativos, então você consegue imaginar quão interessante era.
— Por favor, me diz que você ainda tem as fitas — ele diz.
— Se tiver, você nunca vai ouvir — respondo.
— Acho que sei o que está incomodando você — meu pai diz durante a paella
naquela noite. Ele aprendeu a fazer quando estávamos em Portugal dois verões
atrás para uma de suas conferências. Além de ovos mexidos, é no fim das contas
tudo que ele sabe fazer.
— Ah, é? — digo de modo distraído, encarando os globos oculares de um
camarão. Ele simplesmente não consegue fazer com camarões que se vendem no
mercado. Tem que ser autêntico.
— O garoto — ele diz então, e quase derrubo meu garfo. — O de Nova
York. Vamos lá, você não consegue enganar seu pai.
— Você está certo. — Concordo com a cabeça, apesar de, é claro, ele ter
entendido tudo errado. Porque não tem um garoto de Nova York. — É o garoto
de Nova York.
Meu pai fica sentado em silêncio por um momento.
— Você sabia que o cérebro processa rejeição emocional da mesma maneira
que processa dor física?
Ergo as sobrancelhas:
— Não sabia.
— Bom, é verdade. — Ele sempre se ilumina quando discute o cérebro. —
Quando você se apaixona, o cérebro recebe uma enxurrada de dopamina. O
mesmo efeito que as pessoas têm ao usar drogas. Você é basicamente um
viciado. Mas, quando o amor, a pessoa do seu afeto, é tirado de você,
processamos isso na mesma parte do cérebro que nos diz se nos queimamos,
quebramos um osso ou arranhamos a pele. Então o que estou dizendo a você,
Bichinho, é para não se preocupar. Dor de cotovelo em relacionamentos não é só uma expressão que usamos: tem uma base científica. Então não tem que se sentir
mal por ter saudades dele. É bastante normal. Mas todos os ossos quebrados ou
queimaduras ou corações… Bom, todos eles saram no fim.
Eu me estico e dou um tapinha no braço do meu pai, rápido o suficiente para
que nenhum de nós se sinta desconfortável. Às vezes desejo que ele fosse o tipo
de pai que apenas pergunta onde o cara mora, vai até a casa dele e o pega pelo
colarinho. Mas sei que esse tipo de pai é melhor.

O garoto dos meus sonhos - Lucy KeatingOnde histórias criam vida. Descubra agora