· • • • ✤ • • • · • • • ✤ • • • · • • • ✤ • • • ·A mesa do sr. Ledru tinha personalidade própria, como tudo em sua casa.
Consistia em uma grande ferradura encostada nas janelas do jardim, deixando três quartos da imensa sala livres para o serviço. A mesa tinha capacidade para vinte pessoas, sem ninguém ficar desconfortável. Comia-se sempre ali, tivesse o sr. Ledru um, dois, quatro, dez ou vinte convidados, ou estivesse ele mesmo comendo sozinho. Éramos então apenas seis, e mal ocupávamos um terço dela.
O cardápio era igual todas as quintas-feiras. O sr. Ledru achava que no resto da semana os convidados podiam variá-lo em suas casas ou nas casas de outros anfitriões. Portanto, tinha-se certeza de, nas quintas-feiras, encontrar na casa do sr. Ledru sopa, carne, frango ao estragão, pernil assado, feijão e salada.
O número de frangos era duplicado ou triplicado segundo o apetite dos comensais.
Houvesse pouca, nenhuma ou muita gente, o sr. Ledru ocupava sempre uma das pontas da mesa, de costas para o jardim, com o rosto voltado para o pátio. Sentava-se numa grande poltrona havia dez anos incrustada no mesmo lugar. Nela recebia, das mãos de seu jardineiro Antoine, convertido em mordomo sob o título de mestre Jacques, além do vinho de mesa, algumas garrafas de um velho Borgonha, que lhe eram passadas com respeito religioso e as quais ele abria e servia pessoalmente aos convidados, com o mesmo respeito e a mesma religiosidade.
Dezoito anos atrás ainda se acreditava em alguma coisa; dentro de dez anos, não se acreditará mais em nada, sequer no vinho envelhecido.
Depois do jantar, todos passavam ao salão para o café.
O nosso jantar transcorreu como transcorre um jantar, em meio a elogios para o cozinheiro e bravatas sobre o vinho. A jovem mulher foi a única a comer apenas algumas migalhas de pão, a beber apenas um copo d'água, a não pronunciar uma única palavra.
Ela me lembrava aquela vampira das Mil e uma noites [38] que ia à mesa como os demais, mas usava apenas um palito para comer arroz.
Depois do jantar, como de costume, tornamos ao salão.
Coube a mim, naturalmente, estender o braço à nossa silenciosa convidada, que, para enlaçá-lo, fez em minha direção a outra metade do trajeto. Tinha a mesma languidez nos movimentos, a mesma graça no andar, eu diria quase a mesma imaterialidade nos membros.
Conduzi-a até um divã, no qual ela se estendeu.
Enquanto jantávamos, duas pessoas haviam sido introduzidas no salão.
Eram o médico e o comissário de polícia.
O comissário vinha nos fazer assinar o depoimento, já assinado por Jacquemin na prisão.
No papel, uma tênue mancha de sangue chamava a atenção.
Assinei quando chegou minha vez e, enquanto o fazia, perguntei:
- Que mancha é essa? E o sangue, vem da mulher ou do marido?
- Vem - respondeu o comissário - do ferimento na mão do assassino, cujo sangramento ainda não pudemos estancar.
- Acredita, sr. Ledru - explicou o médico -, que aquele bronco continua afirmando ter a cabeça da mulher lhe dirigido a palavra?
- E acha tal coisa impossível, não é, doutor?
- Por Deus, sim!
- Acha impossível até que os olhos tenham se aberto?
- Impossível.