9. Os túmulos de Saint-Denis

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- E o que isso prova, doutor? - perguntou o sr. Ledru.

- Prova que os órgãos encarregados de transmitir ao cérebro as percepções podem, em determinadas circunstâncias, ser perturbados a ponto de oferecer ao espírito um espelho infiel em que, nesses casos, o indivíduo vê objetos e ouve sons inexistentes. Isso é tudo.

- De toda forma - argumentou o cavaleiro Lenoir, com a timidez de um cientista de boa-fé -, há coisas que deixam rastros, profecias que se concretizam. Como explica, doutor, golpes desferidos por espectros engendrando manchas roxas no corpo daquele que os recebeu? Como explica uma visão capaz de, com dez, vinte, trinta anos de antecedência, prever o futuro? O que não é pode matar o que é, ou anunciar o que virá a ser?

- Ah! - exclamou o doutor. - Refere-se à visão do rei da Suécia? [62]

- Não, refiro-me ao que eu mesmo vi.

- O senhor?

- Eu.

- Onde?

- Em Saint-Denis.[63]

- Quando?

- Em 1794, por ocasião da profanação dos túmulos.[64]

- Ah, sim, escute isso, doutor - disse o sr. Ledru.

- O quê? O que viu? Conte.

- Aí vai: em 1793, eu fora nomeado diretor do museu dos Monumentos Franceses e, nesse posto, vime às voltas com a exumação dos cadáveres da abadia de Saint-Denis, cujo nome os patriotas esclarecidos haviam mudado para Francíada. Quarenta anos depois, sinto-me em condições de relatar as coisas estranhas que cercaram essa profanação.

O ódio a Luís XVI, infundido no povo, e que o cadafalso de 21 de janeiro não fora capaz de saciar, remontara aos reis de sua linhagem. Quiseram perseguir a monarquia até a fonte, os monarcas até o túmulo, espalhando ao vento as cinzas de sessenta reis.

Sem falar na curiosidade de verificar se os grandes tesouros supostamente encerrados em alguns desses túmulos permaneciam tão intactos quando se acreditava.

O povo, então, acorreu a Saint-Denis.

E, de 6 a 8 de agosto, destruiu cinquenta e um túmulos, a história de doze séculos. O governo então decidiu organizar aquela desordem, escavando por conta própria os túmulos e tornando-se herdeiro da monarquia que acabava de golpear na pessoa de Luís XVI, seu último representante.

Tratava-se, em seguida, de aniquilar até o nome, até a lembrança, até as ossadas dos reis; tratava-se de riscar da história catorze séculos de monarquia.

Pobres loucos, não compreendem que às vezes os homens podem mudar o futuro... jamais o passado!

Haviam escavado no cemitério um grande fosso comum, inspirado na vala dos indigentes. Era nesse fosso e sobre uma camada de cal que deveriam ser lançadas, como num depósito de lixo, as ossadas daqueles que haviam feito da França a primeira das nações, desde Dagoberto até Luís XVI.

Dessa forma, dava-se satisfação ao povo, mas sobretudo regozijo aos legisladores e advogados, aos jornalistas invejosos, abutres das revoluções, cujo olho sente-se ferido por qualquer esplendor, como o olho de seus irmãos, as aves noturnas, por toda luz.

O orgulho daqueles que não podem construir é destruir.

Fui nomeado inspetor das escavações. Era um jeito de salvar um bocado de itens valiosos. Aceitei.

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