Dois

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Ela

Acordo com um tímido brilho entrando pela fresta na cortina.

Que seja um dia bom, desejo do fundo do coração. Hoje é meu último dia de trabalho antes das merecidas férias. Nada pode estragá-lo, certo?

Errado. Erradíssimo.

Meu celular pausa a música que toca e começa a tremer convulsivamente no bolso assim que desço do ônibus cheio. Estou com fones, prosseguindo aquela playlist country (playlist essa que Cami estranhou me ver ouvindo. Digamos que seja o oposto do que ouço normalmente, mas... caramba! As músicas são boas!). Tiro as duas bolinhas dos ouvidos e desconecto o fio, pensando se tratar da professora de Ben. Ela disse que entraria em contato e realmente precisamos conversar...

Atendo a ligação para me arrepender no mesmo instante.

-- Que história é essa que você vai viajar com o Ben e não me avisou? -- grita uma voz zangada e familiar do outro lado. -- Ele não vai com você!

Olho meu relógio de pulso. Ainda não é nem oito da manhã e já tenho que aguentar isso, meu Deus! Contenho a vontade de arremessar o celular longe e respiro fundo, contando mentalmente até dez.

-- Como conseguiu meu número, Rodrigo? -- indago, tentando (e falhando) me manter calma. Respira, Vivian. Ele não vai conseguir te aborrecer uma hora dessa da manhã. Não vai! -- Sei que a Ana Júlia não passou meu número novo para você.

-- Não interessa. O que interessa é que o Ben vai ficar comigo nessas férias, tenho meus direitos, Vivi!

Um choro de criança se inicia com a gritaria do meu ex-marido, desencadeando em uma erupção de ódio que escapa do meu corpo. Isso não é hora de ele dar piti.

-- Não, você não tem! -- falo entredentes, ainda com o timbre baixo. -- Você não foi a nenhuma das audiências, foram várias. Qual é a sua desculpa? A guarda unilateral é minha. Você nem sabe o que é isso, não é? Pois vou explicar, já que você não se dá ao trabalho de procurar saber. O único direito que você tem é visita. Apenas! E não me chame por meu apelido. Você perdeu esse direito quando preferiu me trair.

-- Mentira! -- berra, me fazendo afastar o aparelho do ouvido.

-- Você não vê o Ben há mais de oito meses! Cuide de sua filha que está chorando de fome que do meu filho cuido eu!

-- Vivian... -- diz meu nome num tom de alerta. Ele constantemente fazia isso para me intimidar. Agora não consegue mais.

Prossigo:

-- A pensão do Ben está atrasada, falando nisso. Você não o visita, não paga a pensão e ainda quer ficar com ele nas férias, pelo amor de Deus, Rodrigo!

Ele não diz nada por alguns segundos.

-- No momento não estou trabalhando. -- diz baixo depois de pigarrear algumas vezes.

-- Isso não é problema meu. -- retruco mais calma, com o coração batendo muito rápido e completamente partido por ouvir a garotinha, que ainda berra. Com certeza está com a barriguinha vazia. -- Dê alguma coisa para sua filha comer. Isso é choro de fome, Rodrigo. E não me liga mais. Vou levar meu filho sim para viajar. Quando voltarmos, se você quiser vê-lo, aí sim pode entrar em contato comigo através da Jú. Esqueça que eu existo enquanto isso.

-- Vivian... -- fala novamente, percebendo que eu desligaria. -- Eu... eu não...

Suspiro. Dai-me paciência, senhor!

-- Você o quê, Rodrigo?

Ele demora um tempinho para terminar a sentença.

-- Eu não devia ter deixado vocês. -- confessa numa voz quase inaudível. -- Foi a maior besteira que eu fiz na minha vida. Se eu pudesse voltar no tempo não teria feito isso.

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