Fugitiva

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Frio.

É tudo o que sinto enquanto corro, rápida e desesperada é como soa minha alma.

E é nesta escura e sombria floresta de pinheiros e árvores hibernais que encontrarei segurança e paz, onde está minha salvação, só preciso suportar um pouco mais.

Encontrar, encontrar, encontrar...

NÃO PARE!

Posso sentir o cansaço tomar conta dos meus músculos como uma dança lenta, maravilhosa e infernal, o suor desliza queimando pela minha pele, a dormência se insinuando a cada segundo, e meus olhos pesados e cheios de areia fazem a minha visão embaçar através da privação de sono, ainda assim, apesar dessa tormenta auto infligida, não posso parar.

NÃO PARE!

Correr é a única necessidade principal que obriga meu corpo a seguir em frente, a fome e a sede já não eram saciadas há tempos, e meu corpo definha aos poucos, em pequenas doses, doses cada vez mais perigosas... mas...

NÃO PARE!

Forço-me a usar o pouco dos meus sentidos que restam, o olfato e a audição.

E como uma melodia feroz, eles trabalham juntos, no vento e na terra ressoa, inundando meus sentidos de calor e vida, posso ouvir o forte ecoar dos cervos batendo seus cascos nas pedras e na terra, o sangue bruto retumbar nas veias, e como se ligados, dentro do meu corpo algo mais forte queima em euforia e desespero, e assim, dançando a musica da besta eu sou guiada e deixo o caçador tomar conta de mim. Meu corpo fica mais rápido e ágil, os sentidos se aguçaram para um ataque selvagem e desleixado, e no meu salto um animal desesperado e faminto ataca.

Eles são tão belos e vivos, mas eu não posso me deixar apreciar, estou faminta e não a tempo para escolher a dedo, para calcular o valor de suas vidas, eles estão em três, dois machos e uma fêmea jovem, mesmo que meu coração proteste pela matança não posso controlar meus instintos, muito menos minha necessidade, e é na fraqueza que eu sou covarde, escolhendo o mais desatento deles.

Tão fácil ele se rende ao meu abraço mortal, se entregando a escuridão da morte de forma rápida e pacífica, tão submisso, a onda de calor acompanhada pelo líquido quente enche meu corpo de brilho, como um raio atingindo uma árvore, ao invés de queimar e destruir, ele repara e viaja pelas minhas veias, reanimando cada célula fraca.

Não é saboroso, é maior que isso, essencial, a cura, doloroso e milagroso.

Tristeza estala no meu coração, a morte pode vir para todos, e isso ainda não significa que esta ação, a escolha, seja determinada por mim.

Eu odeio matar.

ODEIO! ODEIO! ODEIO!

Quando acaba, só sinto a inundação de ondas quentes, meu estômago faz um som aquoso quando me levanto, como se água demais preenchesse o espaço, calor sobe para o meu rosto e olho com constrangimento para o chão, esperando que o ciclo da vida tome parte do meu remorso, que a beleza sombria da morte na pureza da mãe natureza carregue o ato manchado de culpa, devolver o corpo do animal para a terra chega a confortar minha alma perturbada, não o suficiente, eu não era digna o suficiente de tal piedade, não sou uma criatura da natureza.

Sento o vento soprar sobre minha pele machucada e fria, e com ele vem um cheiro familiar, fresco e úmido, o cheiro da água, de gotas de chuva e vento, eu sei que estou mais perto, perto do riacho, perto da segurança prometida.

Minhas pernas voltam a se mover novamente de modo automático, minha alma ânsia pelo descanso almejado, e corro como se minha vida estivesse há um fio do fim, mesmo que não seja necessário, mesmo que nesse momento eu tenha deixado meus inimigos para trás, longe o suficiente para respirar de verdade.

Luar PuroOnde histórias criam vida. Descubra agora