Prólogo - O chamado da Fera

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O fogo da lareira crepitava no salão da mansão do reverendo João enquanto ele era atendido pelo médico da família. 

- Quanto tempo? - o Reverendo perguntou.

- Câncer no pâncreas é muito agressivo, o senhor tem no máximo três meses de vida, Reverendo. Mas devido ao seu histórico de doenças associadas, eu dou duas semanas até que o senhor fique inválido. 

- Hum... tudo bem, deixe-me.

Reverendo João recostou-se mais na poltrona enquanto a porta batia sinalizando a partida do médico. Todo o peso da morte finalmente havia caído sob seus ombros e ele percebeu que toda sua negligência o apunhalaria pelas costas antes que ele pudesse compensar por todos os anos de corrupção. 

- IRENE! - ele gritou.

- Senhor? - a serviçal apareceu logo em seguida.

- Chame meu irmão com urgência, temos muito o que conversar. 

- Claro, Reverendo. 

...

Augusto abriu a porta sem nem bater.

- Mas que porcaria de assunto é esse que não pode esperar eu terminar meu golfe, João? 

- Estou morrendo, Augusto - sua expressão era dura, contrastando com seus cabelos grisalhos - Seu médico acabou de sair e me deixar com a bomba de que estou com câncer no pâncreas.

- Câncer? Deve acabar sendo um fim apropriado para um velho amargurado como você - Augusto disse enquanto se sentava na poltrona mais próxima e acendia seu charuto.

- Augusto, a data da colheita se aproxima, meu irmão. Você sabe o que isso significa. 

O irmão do Reverendo endureceu a expressão automaticamente. 

- Você ainda parece capaz de fazer mais uma filha - disse.

- Sabe que essa responsabilidade não vai ficar pra mim.

- Eu não quero ligação com essa sua seita maldita. Você resolveu herdar essa maldição do nosso pai por livre e espontânea vontade, vendo todas as nossas irmãs morrerem ao longo da nossa vida e também viu como ele morreu em agonia e sofrimento naquela cama. - Ele deu um trago no charuto - Você vai passar seu cargo pra um desses seus amigos virgens e frustrados, não quero esse problema pra minha vida. 

- Augusto... 

- Já falei, meu irmão. Não quero passar os dias que me restam condenando garotinhas à morte em nome de uma Fera que nem sei se existe, julgando que é pelo prol de todos. Essa loucura já deveria ter acabado na geração anterior.

Reverendo João bateu o pé e bradou.

- AUGUSTO! Já tolerei demais suas blasfêmias em minha presença! Não se esqueça que você mama no dinheiro que nossa família recebe dos fiéis dessa cidade desde que nasceu, nem sequer ajudou papai nas congregações, rituais e nos cultos. O dia da colheita não está longe e você sabe que o dever que nossa família carrega por gerações é um dos sacrifícios mais nobres que existem nesse mundo! 

- Sacrifício esse que deixa todos nós doentes com miséria dentro dos nossos corpos? - Augusto levantou - Não quero mais saber dessas suas ladainhas sem fundamento. Não temos nenhuma comprovação de que essa criatura, de fato, existe. Eu quero que você me dê UMA razão concreta para continuarmos com essa barbaridade.

- Se não acredita que ela existe, porque continua colocando a culpa das suas lástimas na maldição da nossa família? - o Reverendo riu - Irmão, sei que por ser mais novo, ainda tenha dificuldades para acreditar em todo o contexto da ameaça que estamos perto de enfrentar. - ele levantou.

Os dois ficaram de pé se encarando, quando a chuva começou a cair e sobrepujar o som do fogo na lareira. Uma pele bem grande de animal era iluminada na parede pelo vermelho das chamas enquanto os irmãos conversavam.

- Cento e cinquenta anos atrás... - o Reverendo começou, mas foi interrompido.

- ... A Fera não teve sua fome saciada e trouxe destruição à nossa cidade. Ouço essa história desde criança, acho que não sei da ladainha?

- Você não sabe de toda a história - o Reverendo continuou - A Fera veio na segunda Lua nova do ano, chegou tão quieta que a única coisa que entregou sua presença foi o grito da sua primeira vítima... um grito tão terrível que deve ter sido ouvido até pelos deuses. Ela se movimentou tão rápido que suas pegadas conseguiam ser mais profundas que as de um elefante. 

- João...

- Em seguida veio o fogo! A Fera é uma criatura tão maligna que até o inferno se submete a obedecer a seu comando, enviando seu fogo maldito para nos atormentar, incendiando as casas e espalhando o pânico por nossa cidade. Depois de extrair até a última gota de morte e sofrimento ela nos deixa, deixando pra trás nada mais do que casas em chamas e pessoas ao chão repletas de buracos e cortes em seus corpos.

- João...

- Augusto, a Fera é uma criatura maligna. Possui chifres maiores que os braços de qualquer atleta em sua cabeça, consegue ficar ereta como um ser humano, pra alcançar qualquer superfície onde um pobre coitado tente se esconder. Suas garras são mais afiadas que qualquer faca que empunhemos e seus dentes conseguem mastigar qualquer osso. É uma criatura tão terrível que apenas sua presença é capaz de acovardar o mais corajoso dos homens.

- E o que isso tem a ver conosco?

- Nosso avô foi o único que foi capaz de feri-la. Ele estava lá no último ataque da Fera. Ele empunhou seu facão e assim que ela abriu sua boca para abocanhá-lo... Ele meteu-lhe a lâmina goela adentro da criatura. Ela bateu-se nas paredes em chamas da nossa casa, cuspiu a peixeira e correu em meio às árvores do bosque. Desde então o brasão da nossa família se tornou a imagem da Fera e é nosso dever impedir que ela volte.

- Mas porque isso precisa ser tão cruel? - Augusto perguntou.

- A Fera é uma criatura terrível. A cada vinte anos o Reverendo precisa dar-lhe uma menina de bom grado para que ela tenha piedade de nós e que mantenha a morte e o fogo longe da nossa cidade.

- MAS ISSO É UM ABSURDO JOÃO, VOCÊ SABE.

- Augusto, é o único jeito e você sabe. Eu não tenho mais condições de ter filhos agora... Você precisa entregá-la quando o dia chegar. Você precisa aceitar meu fardo.

- A questão não é o que eu quero ou não... E sim o que ela está disposta a fazer, meu irmão.  

A Garota de BaskervilleOnde histórias criam vida. Descubra agora