Capítulo 1 - A renúncia

328 40 503
                                    

Eu vi Ágata voltando do bosque com um cervo nos ombros. Nada de incomum.

- Foi rápido dessa vez - eu disse.

- Esse não teve muita chance, veio andando pra mim pensando que eu era amigável - ela respondeu enquanto colocava ele no chão.

- Esse é um erro que não se comete muitas vezes, não é? - Margarida retrucou. Ela estava sentada no sofá da sala da mansão, toda pomposa, de pernas cruzadas e lendo uma revista procurando alguma programação interessante. Margarida era uma das pessoas mais simpáticas e inteligentes que eu conhecia. Seu cabelo ondulado e castanho descia até seus ombros, e a seus quilos a mais não pareciam incomodá-la em nada.

Ágata, por outro lado, era quase maníaca com seu peso. Ela vivia uma dieta estrita de baixos carboidratos, fazia praticamente todas as atividades do dia de saltos altos e tinha um olhar tão penetrante que quase te fazia sentir pequenos furos no rosto quando ela te fitava. Seu cabelo preto e liso descia até metade de suas costas e seu rosto pontudo dizia sobre sua personalidade até mesmo antes de ela abrir a boca.

- Vou deixar passar essa piadinha hoje só porque é o dia que meu pai vai assumir o cargo de Reverendo - Ágata disse quanto arrumava o cabelo - Alguém vai vir aqui pegar o cervo ou eu mesma vou ter que pegá-lo, esfolá-lo e cozinhá-lo? 

- Os criados da cozinha já virão, madame - Irene, a governanta, respondeu. Irene, coitada, sofria nas mãos dela e de seu tio. Quase não falam com ela sem ser pra dar ordens ou desrespeitá-la. Ela já tinha um olhar triste e uma cara pálida.

- Ótimo, eu vou me banhar e me trocar. Faça a manutenção do meu arco e abasteça minhas flechas, quero tudo pronto para a próxima caçada, ok? 

- Claro, madame - Irene respondeu enquanto pegava o arco e a aljava. 

Foi nesse momento que eu percebi que o cervo estava com a flecha empalada em um de seus olhos. Ágata deve ter esperado ele chegar bem perto pra atirar... que crueldade.

Irene partiu, os funcionários vieram e levaram o animal.

- Beto! - Margarida cochichou enquanto acenava pra eu me aproximar.

- Diga, diga - falei enquanto corria pra perto. A sala da mansão conseguia acomodar mais de cinquenta pessoas tranquilamente, então correr de um sofá para o outro é quase uma maratona. Ela era toda trabalhada em tons escuros, então dava um ar de poder que só quem é da elite podia sentir... era o que Ágata dizia. As pilastras eram de um branco marfim tão brilhante que eu quase conseguia ver meu reflexo nelas, enquanto o chão possuía um tom amarronzado feio, quase brega. Mas como foi o avô de Ágata que a construiu, dá pra entender.

- Agora que todo mundo saiu podemos fofocar. Você não acha estranha essa transferência repentina do cargo de reverendo? - ela disse, ainda baixinho.

- Eu não sei... você acha? - eu não era das pessoas mais atentas ao que acontecia ao meu redor, quem fazia isso por mim era Margarida. A intuição dela era infalível, ela praticamente conseguia sentir o cheiro de podre.

- Eu acho viu! Ainda mais que o Reverendo João fez um pronunciamento mês passado falando que sua saúde estava ótima..., mas quem em plenos... oitenta anos? - ela fez uma cara de raciocínio - estaria com a saúde ótima? Eu tenho quase trinta e minha coluna já tá aqui toda acabada.

- Menina, será que ele tá com alguma coisa? - eu retruquei. Talvez parte da minha confiança em Margarida viesse da nossa diferença de idade. Ela tinha vinte e nove enquanto eu tinha vinte e quatro, na época. 

- Minha suspeita é que ele não consegue mais aguentar o tranco do cargo e vai passar pro irmão mais novo. Mas o que eu ainda não consigo entender é porque o pai da Ágata aceitou o cargo se ele deixa claro em toda oportunidade que tem que não concorda com as práticas... Eu acho que tem coisa suja aí por baixo dos panos. 

A Garota de BaskervilleOnde histórias criam vida. Descubra agora