Carmesim etéreo.

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Em algum momento da sua vida, já conseguiu ver pela audição? Ou pelo tato? Esta é a minha vida nos últimos 12 anos, acometido por uma infecção nos olhos, sem zelo materno, a cegueira chegou logo cedo, todo o mundo se escureceu, vivi as histórias das vidas ao meu redor somente pela audição, repressão e dor, sentimentos não vistos, entretanto criaram-se dentro do meu ser, arrastei a vida, engolindo os xingos, as brincadeiras de mal gosto, as tentativas de ser usurpado da inocência, meu irmão mais velho logo se foi de casa, deixando-me abandonado com aquela que diz ser mãe. Não quero falar disso, não agora, este é o relato do dia que eu ouvi o amor da minha vida.

Saí da escola decido não retornar, a noite anterior foi de penúria dentro de casa, fez dois anos que Erty desapareceu das vistas de minha mãe e tudo sobrou para mim, da mesma forma que ele se exauriu, eu também cheguei ao limite, fui para escola com tudo planejado, algumas roupas empurradas na mochila, o básico para higiene e fui, próximo ao último quarteirão desviei para esquerda, sabia que aquele era o caminho que Erty fizera da última vez, eu sabia que poderia encontrar aquele garoto que ele tanto falava, todas as vezes que ouvi o nome dele meu coração acelerava, quebrei muitas esquinas, virei em várias direitas, depois de uma tarde inteira andando, me perdi, senti a aproximação de uma árvore, assentei sob ela, meus pés ardiam, minha testa também, estava perdido e sem saber o que fazer, as pessoas evitavam me responder, coloquei a mochila atrás de mim e cochilei, não muito demorou a chuva de verão acertou meu corpo, não sabia onde ir, o que fazer, o choro escorreu com a água, não poderia voltar para casa, a criadora dilaceraria meu corpo e eu também estava farto disso, o abandono já era algo rotineiro em minha vida, então mais dia ou menos dias ele aconteceria de fato, sem querer eu adiantei isso, não sabia para onde ir ou o que fazer, deixe-me retesar ali mesmo sem esperança, a fome já estava presente, segurando o estômago, adormeci.

Oito dias se passaram, vaguei por todo centro sem conseguir me localizar, me mantive de restos dados por algumas pessoas, dei graças que minha casa era distante do centro e que seria impossível que meu pai me procurasse ali, no nono dia eu já não aguentava mais, pedi ao vento que me guiasse, segui a brisa até próximo ao que parecia a tão falada Central, uma pena que eu jamais conseguiria enxergá-la, aproximei de um banco e sentei, sentia o sol fervendo em minha pele, provavelmente estaria toda queimada, não tive coragem para tocar, minha garganta ressecada pelo calor clamava por água, recostei no banco e apaguei novamente, mais vale o sono da dor do que o calor abrasador. Senti meu corpo arder e bem distante ouvir alguém me chamando, a voz que eu reconhecia, ele.

- Gábrio? Gábriooo? O que você faz aqui?

- Hã?

- Gábrio, você está todo queimado, sujo, imundo, misericórdia, o que houve? Porque está aqui?

- Oi? Quem é você?

- Simon, amigo de Erty. – Fiquei estático quando o ouvi, sai a procura dele e ele me encontrou, mas eu não sabia o que dizer

- Simon???

- Sim, da escola de Erty, lembra?

- Sim. Eu fugi, eu não consegui encontrar... - gaguejei – ele. O Erty, não consegui encontrá-lo.

- Ele está muito longe, Gábrio. Em Carlemary

- Eu não sabia, mais não posso voltar pra casa.

- Bom, você pode ir lá pra casa, até conseguirmos falar com ele.

- Não, eu não quero incomodar.

- Anda logo, vamos, eu pego sua mochila.

Ele me ajudou a levantar e caminhamos até a sua casa, não era tão longe da Central, a todo momento senti seu braço a me apoiar, desviando das pessoas e dos postes, quatro foram as vezes que eu quase bati a cabeça, ele não me soltou por nenhum momento, sabia que estávamos aproximando, o vento estava ali, ele me ajudou a entrar na casa e colocou minha mochila na mesa.

- Eu acredito que você esteja com fome, Gábrio. Vou te levar ao banheiro, você consegue se banhar sozinho?

- Acho que sim. – Ele me levou até o banheiro, parecia ser grande, seis passos da porta até o Box, outro lugar que eu quase bati, ele me deixou ali só, somente abriu o chuveiro antes, me despi e procurei a água e o melhor lugar que eu conseguiria ficar, deixei que a água caísse sobre meu corpo, esperava que eu estivesse lavando direito, fiquei ali por muito tempo, até que Simon bateu na porta, assustei e escorreguei.

- Eita, segura menino – Senti sua mão pegando na minha. – Machucou?

- Não, é horrível ser assim.

- Imagino, mais você não escolheu, infelizmente. Conseguiu terminar?

- Eu acho que sim.

- Vejo que não, tá cheio de cascão ainda no corpo. Deixe que eu te dê banho.

Estremeci, é muita realização pra uma pessoa só em pouco tempo, ou a morte estava chegando e alguém decidiu me agraciar ou era só coincidência mesmo. Sua mão com a bucha passou sobre todo meu corpo, um toque que eu nunca senti, não consegui nem prestar atenção no que ele falava, meu corpo reverberava sob os seus, eloquente eu não consegui me controlar e tive uma reação em meu sexo, ele parece não ter se importado, para mim foi um longo período que viajei durante a situação, logo senti a toalha sobre meu corpo, ele me secou e direcionou-me ao quarto

- Bom, você trouxe roupas?

- Eu tenho algumas.

-Tudo bem, vou pegar para você, também algum creme para queimaduras, esta muito feito isso. Dói?

- Em alguns lugares, mas não se preocupe, já acostumei.

- Que acostumou o que menino, se orienta. Você agora está na minha casa, então vai ser cuidado sim, ande, desenrole da toalha, que eu vou passar esse creme e você fica ali no banquinho até ele secar na pele. 

Simon me encaminhou até o banco, assentei, fechei os olhos, o que não adianta nada, pois não enxergo mesmo. Não compreendia ainda como que as coisas aconteceram, tudo bem que fiquei alguns dias perdido pela rua, mas ele me encontrou, ele me encontrou!!!!! Senti que ele se afastou, o telefone tocou, de longe apenas ouvi os sussurros.

- Você encontrou Vernes? Onde ele está? Anda logo, liga pro Cornus, RÁPIDO! Estou indo. Pegue a adaga. 

Depois disso mais nada ouvi, permaneci sentado no banco esperando o creme secar, a ardência passou, meu corpo exalava cheiro de folhas frescas, esse foi o primeiro momento que tive de cuidado após Erty ter fugido de casa. 

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