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23 de Dezembro de 1984.

Há muito, muito tempo, em um país distante, um garoto órfão que amava música se apaixonou por uma linda duquesa.

Mais exatamente há trinta anos atrás, foi quando a conheci.

Eu era apenas um garoto de quinze anos, trancado há um mês em um abrigo para crianças, após minha tia-avó Janete, minha única parente viva, ter falecido aos 93 anos, enquanto dormia.

Nunca soube nada sobre meus pais, mas acredito que eles não estavam dispostos a criar uma criança quando resolveram me entregar a algum parente próximo. Mas não sinto raiva, já que fui profundamente amado por tia Janete. Ela era uma mulher incrível e uma musicista ímpar, mestra no piano e cantora de ópera. Nunca se casou nem teve filhos, mas era como uma mãe para mim e sei que me considerava como um filho também.

Talvez por essas raízes na música, me doía tanto ver a garota magrela de cabelo castanho claro destruir "Sonata ao Luar" de Beethoven no piano.

— Se não sabe tocar, apenas não toque. — resmunguei entre dentes ao lado do piano. A frase teve efeito imediato, fazendo-a parar e me encarar estupefata.

— Como é?

— É surda? Seria uma boa desculpa, mas Beethoven também era.

— Acho que esqueceram de dar educação para as crianças desse orfanato! — ela se levantou, o vestido rosa claro balançando com o movimento. Se movia como uma dançarina, movimentos leves e fluidos. Seus olhos eram de um tom castanho esverdeado e me encaravam com raiva. Mantive as mãos no bolso enquanto a olhava de cima a baixo. Uma garota magrela e mimada, quase da minha idade, talvez um ano mais nova. Pelas roupas, tinha muito dinheiro, provavelmente a filha de Ryan Von Luitger, um Duque que doava quantias exorbitantes para o orfanato.

— Você é a filha dele, não é? — apontei com o queixo para o Duque. Ela assentiu. — Devia ter mais aulas, então, dinheiro não é o problema para pessoas como você.

— Acho que julga muito mal o tipo de pessoa que eu supostamente sou.

— O tipo de pessoa rica que joga dinheiro nos outros como se isso resolvesse alguma coisa. — dei de ombros. Houve uma época, muito antes de eu nascer, onde tia Janete tinha centenas de admiradores que lhe cobriam em ouro, jóias e vestidos caros. Não adiantou muito no fim das contas, quando a beleza se foi com a chegada da idade, todos eles se foram também.

— Bem, certamente ajuda. — ela respondeu e eu não pude argumentar contra isso. — Nunca me dei bem com o piano ou com qualquer instrumento, então com o tempo eles só... desistiram de me ensinar. Não me importo, na verdade, não gosto de tocar.

— E do que você gosta? — perguntei. Ela já não parecia ressentida.

— Eu... Não sei. Sempre tenho tarefas e obrigações, então...

— Então nunca fez algo que gostasse só pelo prazer?

— Bem, eu gosto de estar aqui. Sentir que estou ajudando as pessoas de alguma forma.

— E ainda assim, ouvi dizer que vocês só vem uma vez por ano.

— Não me deixam escolher o que eu faço ou não. Não é como se eu fosse livre pra ir para qualquer lugar a qualquer hora.

— E você é o que, prisioneira de guerra? — ironizei. Para minha surpresa, ela riu.

— Genevieve, venha aqui agora. — ralhou o Duque ao pousar os olhos na filha. Genevieve parou de rir, abaixando a cabeça e começando a andar em direção a seu pai.

— Você pode, sabe. — eu disse em voz baixa. Seu olhar encontrou o meu.

— O que?

— Escolher.

Ela assentiu com um pequeno sorriso e andou depressa até o pai, passando o restante do tempo seguindo-o, quieta como uma sombra.

No fim das contas o dinheiro ajudou mesmo e as melhorias começaram alguns dias depois. Roupas novas, paredes sendo pintadas, mais variedade na cozinha. Aos sábados tínhamos inclusive sobremesa. A conversa com Genevieve nem mesmo passou pela minha mente até duas semanas depois, quando uma comitiva de guardas chegou ao orfanato, me convocando para a casa dos Von Luitger.

Devo admitir que meu sangue esfriou ao me recordar de ter ofendido a filha do Duque e me preparei para uma morte lenta e dolorosa na qual o único culpado seria eu mesmo e minha burrice. Ela era a queridinha do país, todos a amavam e eu a insultei gratuitamente porque estava envolvido demais na raiva do luto para me dar conta de que estava sendo grosseiro. Fui escoltado por todo o caminho até o carro preto com insulfilme tão escuro, que talvez me matassem ali dentro mesmo. Eu estava tão, tão ferrado.

Sorrisos QuebradosOnde histórias criam vida. Descubra agora