the truth

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  não levou muito até que eu percebesse que o tempo como estava acostumada a ver e contar, era completamente diferente nesse novo lugar que ainda não sabia o que era. parecia que já fazia uma semana desde que havia chegado ali.

  — então, o que exatamente se faz aqui? quero dizer, se no céu as pessoas cantam para deus eternamente e no inferno elas queimam por seus pecados, o que acontece quando chegamos aqui? — perguntei, confusa.

  — nada. simples assim. aqui você só não existe. alguns morrem mais uma vez de remorso ou desespero. mas você pode ser diferente. — ela respondeu com certo entusiasmo. — a propósito, de onde tirou essas ideias de céu e terra?

  — ah... — suspirei frustrada — são coisas que a gente ouve desde sempre. me acostumei com essas "certezas", embora nunca as tenha realmente abraçado como sendo minhas certezas. se é que eu tenho alguma, afinal — conclui, dando de ombros.

  — estou certa de que tem muitas, mas estão perdidas entre as coisas que você deixou o mundo incutir na sua cabeça. você viveu o suficiente pra ter grande parte de sua essência ameaçada, por isso está aqui. — respondeu sem me encarar.

  — achei que estivesse aqui porque me matei asfixiada. — repliquei, sarcástica.

  — e está. a questão é que você não se matou porque simplesmente não queria mais viver. o que te levou a dar fim à sua vida foi o fato de que não queria enfrentar o mundo sendo quem é. a realidade te pareceu dura demais, porque ser sua versão mais autêntica é, para você, uma responsabilidade maior do que pode suportar. — ela disse, como se tivesse todas as respostas na ponta da língua.

  a essa altura eu já havia desmoronado em lágrimas. desde o começo da agonia que assolava minha vida, tudo o que tinha em mente, era a ideia de que estava exausta de viver, porque a minha existência era absolutamente cansativa, e pensar nisso ao despertar e ao fim de todos os dias só me dava mais coragem para fazer o que acreditei ser a solução para o que sentia.

  mas, de repente, uma verdade áspera e absurdamente clara se fez visível diante de meus olhos e eu não pude ignorá-la. verdade essa que, se eu visse antes de morrer, diria que era capaz de estragar tudo, mas que agora me parecia a única saída.

  — como você sabe disso se somos exatamente iguais? — indaguei, finalmente.

  — quase iguais. digamos que eu sou você sem toda a carga que te foi imposta. com uma consciência ampla e livre de quaisquer desejos humanos. — ela respondeu, balançando as pernas como se estivesse num balanço em movimento.

  — interessante... mas ainda confuso. por acaso, seria possível trocarmos de lugar? — brinquei, embora a ideia realmente passasse por minha cabeça.

  — vai ter tempo para entender isso e mais. e não, não há possibilidade de mudarmos de corpo. sua missão é exclusivamente sua e estou aqui para te mostrar como cumpri-la. além do mais, por que eu iria querer estar no seu lugar se sei muito mais que você? — ela replicou, arqueando uma das sobrancelhas.

  me perguntei se era tão divertida quanto ela me parecia, porque quando olhava para mim mesma, via tantas coisas me faltando e por isso me julgava alguém pouco interessante. mas quanto mais a assistia de perto, mais reparava detalhes agradáveis nela e desejava ser mais como era.

  como posso deixar de ser eu para me tornar ela se somos a mesma?

querida roseanne | chaelisaOnde histórias criam vida. Descubra agora