Epílogo

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Imagens do teste de Rorschach postas sobre a mesa eram, hora ou outra, analisadas em silêncio pelo homem algemado.

- Preciso que me diga o que vê, senhor Castro! - a ruiva diz recebendo um sorriso do homem à sua frente.

- Achei que já tínhamos passado da fase de formalidades, senhorita freudiana!

- Eu já pedi pra parar de me chamar desta forma, Leandro! - a psicóloga fala disfarçando o incômodo que aquele olhar carregado e intenso deixava.

- Desculpa, Bianca! Eu esqueço que fica incomodada quando te chamo assim. - Leandro solta uma risadinha e encara o desenho. - Eu vejo uma mancha.

- Que tipo de mancha?

- O tipo que você adquire com tapas e socos! - Bianca esconde a súbita animação que percorre seu corpo pela conversa estar prosseguindo sem ele usar uma referência para fugir do assunto, ela estava chegando à algum lugar, afinal.

- Pode ser mais específico, Leandro?

- O senhor Leopoldo Castro, meu pai - diz com seu rosto se contorcendo em uma leve careta - quando a minha mãe morreu, não que ele fosse melhor antes, mas depois, as medidas de ensino dele se tornaram um pouco mais severas. Ele nunca tolerava erros, o que é muito complicado para duas crianças associarem tão bem quanto ele desejava.

- Então, ele agrediu você e sua irmã?

- Isso é quase um eufemismo! - sua voz, pela primeira vez, chega aos seus ouvidos cheia de escárnio - Quando mamãe morreu, quem tomou o lugar de chefe da casa foi a Fernanda, e com isso, quase automaticamente ela tomou o lugar de me defender também. - Bianca presta atenção no carinho tomando as feições de Leandro - Claro que Leopoldo não podia perceber que não tinha o controle das situações, ele queria perfeição, mas ninguém poderia ter mais "poder" que ele próprio.

- Sua mãe, a senhora Cassia, como ela era?

- O ser humano mais gentil e adorável que você possa imaginar! - sua voz beirava a um clamor íntimo e devoto - Se você conseguir imaginar a concepção de perfeição, saiba que ela existiu e foi a minha mãe.

- Sua mãe parece ser a pessoa mais importante para você. - diz enquanto escrevia freneticamente: "Aparentemente o paciente nutre problemas de relacionamento com homens, principalmente quando são familiares. Começando com seu próprio pai e depois refletindo nos tratamentos distintos dos seus dois filhos: Luan apresenta sérios problemas de adaptação, socialização e depressão. No entanto, Lara parece ser uma criança totalmente feliz e adorável. As expressões corporais e o tom de voz mudam de acordo de qual filho, Leandro está falando."

- Ela é uma das mulheres da minha vida, junto a Fernanda, Paloma e Lara. - Leandro a olha amigavelmente - Você é muito inteligente, Bianca, admiro isso em você.

A psicóloga sente seu rosto esquentar e ela não consegue identificar o porquê.

- Sabe, Bianca, você é a única que tenta me entender! - sua expressão se torna aérea e até um pouco perdida, atraindo a total atenção da mulher - Não é difícil saber que ninguém nem ao menos se esforça por você?

- Você se sente incompreendido?

- As vezes... quem nunca? - direciona um olhar penetrante e intenso à mulher que arqueia uma sobrancelha, estabelecendo uma troca de olhares.

Não era incomum de acontecer. Muito pelo contrário. No decorrer dos meses tornou-se muito frequente e os dois sabiam que aquele jogo significava muito. Um analisava o outro e vice-versa; ambos conseguiam captar rápidos vislumbres de emoções e reações do outro e usavam isso a seu favor.

Algumas vezes, ela desviava e ajeitava-se desconfortável na cadeira enquanto ele dava um sorriso de canto como se tivesse descoberto algo, no âmago daquela psicóloga, que não devesse ser proferido. Em outras, no entanto, ela permanecia firme com uma expressão que beirava a arrogância e ele, olhava um ponto qualquer sobre o ombro da mulher e começava a divagar sobre filosofia.

De um jeito confuso, observa-los era hipnotizante. Mesmo de fora, era possível ser arrastado por aquele redemoinho cheio de tensão. Quem encarava a cena se entregava em extrema concentração e perdia minutos sem perceber. Parecia uma batalha envolvente. Ninguém sabia realmente o que estava acontecendo; Bianca estava estudando seu paciente ou Leandro estava aprendendo sobre sua doutora? O assunto atingiu seu pináculo quando, além de serem observados, apostas começaram a serem feitas.

Mas se eles estavam em uma disputa, a questão era: quem ganhava no final?

- Já ouviu falar no mito de Er? - Bianca abre um sorriso convencido que não é visto por Leandro enquanto ele continua a falar sem esperar confirmação - Quando o pastor grego Er morreu, foi levado ao reino dos mortos e lá encontrou as almas de heróis, governantes, artistas... Er descobriu que todas as almas renascem para se purificarem de seus erros até não precisar voltar para à terra e elas podem escolher sua próxima vida. - Leandro continua, ignorando Bianca escrever sem parar - Para retornar a terra, as almas atravessam uma planície por onde corre o rio Lethé, que significa 'esquecimento', e bebem de suas águas. As que bebem muito esquecem toda a verdade que contemplaram, as que bebem pouco quase não se esquecem. As que escolheram vida de rei, guerreiro ou comerciante rico são as que mais bebem, as que escolheram a sabedoria são as que menos bebem.

- Não entendo onde quer chegar! - mente, entendendo sim, mais do que falaria em voz alta.

- Gosto de observar as pessoas e encaixa-las no mito, para descobrir se beberiam muito ou pouco das águas do esquecimento...

- Não importa! - diz fechando o caderno - Não é real!

- Nunca disse o contrário! - abre um sorriso como se contasse uma piada interna - Antes de ir embora...

Ambos escutam o tilintar das chaves batendo uma contra a outra em frente a porta, o tempo tinha acabado. Os dois se encaram mais uma vez.

- Diga-me, doutora, você gostou da história da Harley Quinn?

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