1. Necropsia

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Branca e fria. A sala de necrotério fazia Ângela se sentir no Pólo Norte rodeada por corpos. De todas as salas do prédio, com certeza aquela era a que a policial mais detestava. O cheiro a lembrava hospital e ela odiava as lembranças que o lugar trazia.

Lembranças invadiam sua cabeça sem permissão e naquele ambiente se tornavam mais difíceis de refrea-las. A morena poderia tentar fugir de suas memórias, mais uma hora ou outra elas sempre a alcançavam e ela sabia que no trabalho que tinha, isto poderia ser bem complicado.

- Tudo bem? - Augusto a desperta com um toque sutil no braço e ela se limita a assentir em um aceno rápido - Gosto desse cheiro. - diz aspirando o ar profundamente.

Ângela sentia vontade de bater no agente nesses momentos, o problema é que nem se tentasse teria forças para isso, pois já estava mais uma vez, perdida em memórias.

- Eu amo esse cheiro, sei que a maioria das pessoas dizem odiar, - a mulher diz se ajeitando na cama enquanto fechava os olhos e inspirava fortemente - mas, eu gosto desse cheiro.

A menina se limitava a observar os traços da jovem mulher debilitada, era belíssima, sua tez se encontrava pálida naquele momento, seus olhos eram escuros, assim como seu cabelo que tinha voltado a crescer a pouco mais de um ano e já chegava bem abaixo dos ombros... e tudo indicava que voltaria a cair.

A garota desejava ser como ela quando tivesse sua idade, a mesma força e gentileza. Com a diferença da profissão, pois ela desde sempre foi apaixonada pelas aventuras policiais que seu pai contava.

- Talvez seja o costume! - a mulher abria os olhos em um esforço de se manter acordada e observar cada canto da sala do hospital - É engraçado me ver nessa posição, eu sempre estive do outro lado ajudando como médica e agora sou mais uma paciente.

- A senhora vai voltar a usar seu jaleco, mãe.

- Ah, Angel! - a mulher encara a garota com devoção. Sua filha tinha os olhos e cabelos castanhos do pai e ela amava olhar para um e ver o outro nos traços, mesmo que o marido afirmasse teimosamente que a garota se parecia muito mais com a esposa - Sabemos que não.

- Essa não é a primeira vez, mãe, lembra?

- Não é, mas eu sou médica, lembra? - diz imitando-a e dando uma leve risada - Dessa vez está pior.

Mãe e filha se encaram por longos minutos, em uma conversa íntima e silenciosa.

- Você é muito mais forte do que pensa, Ângela - a mulher desvia o olhar para a porta escutando a voz do médico e do seu marido e encara sua filha mais uma vez, por um segundo não havia sinais de fraqueza - Cuide do seu pai, sim? Sei que não deveria pedir isso para uma criança, mas, vocês vão precisar estarem mais unidos do que antes e eu sei que seu pai vai cuidar...

A menina desperta a mãe dos devaneios ao apertar e beijar sua mão ternamente, a mulher sabia que o gesto significava um "sim".

- Vocês estão aí! - Ângela engole a seco quando é despertada de suas memórias pela segunda vez. A diferença é que dessa vez por um homem de vastos cabelos grisalhos e olhos acinzentados. - Prazer, me chamo Otávio, sou o legista responsável pelo caso de vocês.

- Foi o senhor quem nos chamou aqui por que disse que a necropsia estava concluída, não? - Augusto pergunta, mesmo já sabendo a resposta.

- Sim! - o senhor dirigiu-se rapidamente a um corpo sobre uma maca, coberto da cintura para baixo - Hm, então, vocês já se perguntaram como um homem alto e forte como o senhor Silva pode ter sido apunhalado de tão perto?

Otávio para do outro lado da maca, de frente aos agentes. O corpo separando a distância entre os três tinha um hematoma na maçã do rosto do lado esquerdo, porém o que detinha o horror da cena era o peito do homem. No lugar do coração havia uma parte aberta, de um lado a outro, assim quem se aproximasse o suficiente poderia ver um pedaço da maca.

- Claro que nos perguntamos! - Ângela diz encarando a face do homem - Quando chegamos o rosto tinha algumas escoriações, então pensamos que ele poderia ter tentado lutar com o assassino, se defender com algum objeto da casa que estava quebrado.

- Sim e não! De fato, Wallace tentou se defender, ele levou um soco no rosto e retribuiu da mesma forma - Otávio vendo as expressões de extrema atenção dos policiais se sente mais instigado a prosseguir com suas descobertas - agora olhem a mão direita dele, também está machucada, muito superficialmente, mas está.

- Qual a parte do "não" o senhor se referiu? - Augusto pergunta olhando e pressionando os dedos machucados da mão direita de Wallace.

- Ele estava drogado...

- Nós procuramos por diversas informações e nenhuma delas aponta que Wallace era usuário de qualquer tipo de droga, mesmo as lícitas. - Ângela interrompe cautelosamente, empenhada em lembrar dos detalhes de que tinham descoberto.

- A senhorita não me deixou terminar, ele foi dopado.

- Com um calmante?

- Não exatamente, vocês devem conhecer a droga do "Boa noite, Cinderela", é usada geralmente em festas para dopar uma vítima com a intenção de estupra-la, sequestra-la ou dar algum golpe. Enfim, a pessoa simplesmente apaga.

- Mas, ele ainda lutou com o assassino. - Ângela acrescenta.

- Na minha opinião, ele percebeu a intenção do seu assassino e tentou se defender. O problema é que a droga já estava fazendo efeito em seu corpo para ele reagir e ter alguma chance. - o legista fala encarando de um a outro. - Aliás, o ácido gama-hidroxibutírico (GHB), encontrado no corpo, estava em uma quantidade razoável. O assassino foi muito metódico e cauteloso.

- O que significa que ele queria a vítima consciente para mata-la. - Ângela fala observando o corpo e Otávio concorda. Diferente dos outros dois, o loiro parecia perdido em seus pensamentos.

- "Um bom homem teve o seu coração partido" - Augusto fala encarando sua parceira com as sobrancelhas arqueadas.

- O quê? - Otávio pergunta sem entender.

- Bem, ele não teve o coração partido. Teve o coração, literalmente, martirizado. - a morena encara o loiro e volta o olhar pro corpo.

- Eu não esperava essa parte ser uma metáfora...

- Augusto, não precisamos de mais dramas sentimentais nessa história. Nem quero saber o que você esperava, porque isso já é suficiente. - diz apontando o corpo.

- Apenas pensei que poderíamos criar uma linha sobre algum tipo de conflito sentimental.

- Acho que nosso serial killer pouco se importa com isso. Não acho que o perfil dele seja de um assassino em busca de "vingança" ou com problemas em seu relacionamento com as vítimas.

- Eu não entendi nada! - Otávio diz de braços cruzados.

- Não é nada demais - Ângela fala - O senhor tem mais alguma informação?

- Ah sim, a arma! - o legista fala animado - O corte no peito não parece ter sido dado por uma simples faca. O palpite da minha equipe é que a arma seja um facão Espadim, há uma leve curva no corte do peito da vítima, o que dificilmente, um facão simples iria ocasionar. Um outro ponto, talvez mais evidente, é que o assassino deva ter enfiado e retirado a arma no mínimo umas cinco vezes pelo estrago do peito.

- Esse tipo de arma não deve ser barato...

- Nosso suspeito pode ser algum "colecionador".

- E com muito bom gosto pra armas! - Otávio fala sorrindo - O quê? - pergunta quando os agentes o encaram incrédulos.

- Esqueça, isso é tudo? - Ângela pergunta e o legista assente - Ótimo, enfim temos novas informações sobre o caso.

- Obrigado! - Augusto se despede e segue a morena - Isso ainda não é o suficiente, né?

- Não é, mas é tudo que temos! - suspira pesadamente.

Os agentes saem do prédio conversando sobre o caso e trivialidades para amenizar o ar pesado que os rodeavam.

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