Durante todo trajeto um filme foi passando, os momentos com meu pai, as risadas, brincadeiras, os dias distantes e pôr fim a tristeza e uma saudade que tinha me esquecido como era a sensação. Eu era muito pequena quando ele foi embora, foi algo muito confuso e doloroso, hoje percebo como deve ter disso difícil para minha mãe.
No início eu ficava no portão todos os dias, esperando ele voltar, passa horas sentada, e nada acontecia, dia após dia, e a coitada da minha mãe fazia de tudo para minimizar essa falta, inventava que ele era muito ocupado, algumas vezes estava viajando, outras em uma missão ultra secreta. Até um dia em que não tive forças e resolveu me contar toda a verdade, meu pai sempre teve problemas com bebida, e minha mãe nunca tolerou isso. Um dia após uma bebedeira, ela o pressionou, e ele preferiu ir embora. Lembro da dor que se fosse hoje, meu pai nos trocou por álcool, e naquele mesmo dia pedi a ela que não falasse mais nele, e assim fizéssemos todos esses anos.
Mas hoje foi diferente, percebi em sua voz o desespero, algo sério aconteceu, a Dona Vera não é o tipo de pessoa que se abala com facilidade, não me recordo de ter recebido uma ligação sua fora de hora em outro momento. Após a "separação" minha mãe se transformou em uma fortaleza, nada a deixava triste, imagino que não deva ser fácil, mas ela continua assim. Por isso a fragilidade em sua voz me preocupou, perceber minha mãe entregue a insegurança, me tirou da zona de conforto.
Estaciono em frente à casa da minha infância, olhando assim parece que nada mudou. Todas as reformas feitas mantiveram a casa igual, até meu balanço continua no jardim lateral.
Pego minha chave, e decido não avisar, não temos tempo para isso. Abro a porta e minha mãe está sentada na mesa da cozinha, com vários papeis em cima da mesa e um celular em sua mão.
Ai Deus
Ignoro meu aperto no peito, e vou direito ao assunto.
"O que houve?" – puxo uma cadeira, e sento em sua frente.
Nesse momento ela olha para mim e fala: "Sam, seu pai voltou, fiquei sabendo hoje mais cedo, na verdade está tudo bem confuso, uma assistente social me ligou, ele está muito doente, precisando de um transplante de rim com urgência, e não tinha nenhum familiar, e como legalmente somos casados, ele é MINHA responsabilidade"
Ouvir aquilo me deixou com muita raiva, sei que ele está doente, mas não tem o direito de virar nossa vida do avesso, já nós privamos de tanto por culpa dele, durante toda minha infância minha mãe teve vários empregos, para manter a casa, com o tempo às coisas melhoraram, mas ela sempre batalhou muito, e por isso nunca quis me casar, não quero a vida dela. E nesse momento perdida em meus pensamentos, sinto o toquei suave dessa mulher, que me criou sozinha e deu seu melhor sempre. Pegando minha mão ela diz: "Sam, ele será transferido para cá, ainda não sei como funciona tudo, mas quando estabilizarem ele vira morar comigo, não é a melhor solução, mas não existe outra. Como disse ainda somos casados, e ele é minha responsabilidade"... ela respira fundo.
Coloco minha mão sobre a sua, fazendo carinhos, olho em seus olhos cansados, nunca percebi como minha tinha rejuvenescido nos últimos anos, acredito que a tranquila de nossa vida tem seu valor nesse resultado final.
"Mãe, você não precisa carregar isso sozinha, já sou adulta, vamos dividir esse fardo, até porque ele é meu pai, e seu EX-marido", ela me interrompe para corrigir - "Legalmente somos casados Samantha, e eu escolho casar com ele, não você"
"Mãe, não vamos discutir isso, seremos nós duas nessa, senão não aceito"
Ela respira fundo, percebo o cansaço na voz, coitada da minha mãe, quando era pra ter sossego, ele volta e vai começar tudo de novo, sei que ele é meu pai, mas não é justo deixar minha mãe assim, não depois de tudo que ela passou. Mas agora preciso ser o suporte dela. Levanto-me, abro a geladeira e pego um pouco de leite, coloco nas micro-ondas e acrescento um pouco de mel, entrego para minha mãe, e faço um leve cafuné.
"Mãe, lembra quando eu estava triste, você fala que leite com mel, e um cafuné, podem resolver qualquer problema. Então toma seu leitinho Dona Vera, e vamos dormir um pouco"
Nesse momento percebo uma lágrima saindo dos olhos dela, minha mãe realmente é incrível.
Ela toma um gole, e olhando para mim ela diz - "Filha, você é muito melhor do que eu poderia imaginar obrigada meu amor"
Nos abraçamos e seguimos para o quarto dela, e depois de longos anos, resolvo ser o Porto Seguro dela, não como a fortaleza que ela foi, mas me permito por uma noite ser a bebezinha da mamãe. Deitamos em sua casa e dormimos abraçadas como todas as noites da minha infância após meu pai ir embora.
Sei que não conseguirei dormir, mas posso fingir por uma noite, se isso garantir o sossego dela, pois com certeza ela fez muito mais por mim.
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Devaneios de uma mulher de 30
RomanceSamantha, é uma jovem prestes a completar trinta anos, cheia de vida e projetos. Com temperamento difícil, muitas vezes acaba por se isolar no seu mundo perfeito, mas algo inesperado acontece e a tira do chão, fazendo pensar e reviver seu passado, e...