Entrar naquele quarto não foi fácil, a sensação de estar saindo do eixo não é lugar favorito, pensar em meu pai voltando e principalmente voltando doente, é muito complicado. Mas precisamos enfrentar, quando entro não tenho reação, vejo um estranho, magro e debilitado, desde que decidimos não ver fotos dele eu simplesmente fui bloqueando suas imagens da memória até não me lembrar, e quando olho para ele a sensação de vazio é inevitável, meu pai é um completo estranho, não tinha ao menos referências para imaginar como seria esse encontro. Acredito que por isso tenha sido tão prática quando comecei a falar, não posso deixar minha mãe assumir tudo, não sou mais criança, e sinceramente vou convence lá a ficar em casa, meu apartamento é confortável, e bem localizado, fora que ela poderia "respirar" sempre que quisesse pois eu estaria bem perto, ele fica próximo a editora, desta forma ajudaria muito mais.
Nesse momento a porta abre, e vejo um rapaz entrando com um jaleco branco, seu "Bom dia" me traz de volta a realidade.
"Bom dia Renato, como acordou hoje?"
"Bom dia Doutor, estou melhor, um pouco cansado ainda, mas bem melhor"
"Acredito que vocês sejam a esposa e a filha, muito obrigado por terem sido tão rápidas em nos retornarem, vou fazer um rápido teste clínico, e já passo as informações sobre o estado atual dele "
Ele direciona sua atenção ao meu pai, e posso observar o nome no jaleco, Dr. Bruno nefrologista. O caso realmente deve ser grave para mandarem um especialista as 8hrs da manhã. Ele continua fazendo os testes, aferindo a pressão e etc., assim que finaliza volta a atenção a nós.
"Bom, sei que não é algo habitual, mas o Renato é um paciente renal crônico, o que seria isso, seus rins pararam e ele necessita de hemodiálise 3 vezes por semana, até conseguir um transplante, como seu corpo não estava respondendo bem as sessões preferimos internado para realizar as diálises no hospital e ir monitorando suas funções, infelizmente ele precisa de acompanhamento constante, alimentação e ingestão de líquidos devem ser avaliadas com cuidado, pois ele muito fraco, seu caso precisa de um transplante com urgência e a lista de doação é imensa, por este motivo estamos buscando uma sobrevida até encontramos um possível doador. Peço desculpas por despejar todas essas informações, mas realmente o caso é grave, acreditamos que sem um transplante ele não consiga sobreviver por muitos meses, e é neste ponto que a família entra, precisamos coletar a maior quantidade de informações dos familiares e testar os possíveis doadores, ele nos contou toda a sua história, e desta forma começamos localizar vocês"
Nesse momento eu acabo interrompendo a explicação - "Peraí, deixa eu ver se entendi, nós estamos aqui porque sem nossa ajuda ele vai morrer? É isso"
Meu pai apenas assente com a cabeça.
"Então você some por 25 anos, deixa eu e a mamãe a nada, finge que nunca existimos e agora que pode morrer lembrou que tem família?
Pra variar só importamos quando você precisa, olha Doutor sei que não é sua culpa, mas nós passamos por muita coisa esse tempo todo, minha mãe quase morreu de tanto trabalhar pra pagar todas as dívidas que ele deixou, não está sendo nada fácil para ele, e descobrir que só estamos aqui porque ele precisa é revoltante"
Antes que o medo possa falar, meu pai tenta se explica - "Sam, eu imagino o que vocês passaram, eu era jovem, imaturo e ..."
Minha mãe o interrompe - "Renato, não queremos suas desculpas, sei das minhas obrigações legais com você e vou cumprir, mas apenas isso, não seremos uma família de novo, não tente se desculpar, você não sabe nada da nossa vida. E doutor nos perdoe. É que tudo isso nos pegou desprevenidas, mas minha filha é uma ótima pessoa e com toda a certeza faremos os exames necessários, mas infelizmente não temos contato algum com a família dele, conforme os anos passaram todos nós abandonaram"
E com a voz mais calma do mundo Doutor Bruno continua sua explicação, como se nada tivesse acontecido -"Entendo, mas vocês já são duas novas chances, e precisamos ter esperanças, os exames de compatibilidade são simples, nossa esperança é a Samantha, por ser filha tem grandes chances de ser a doadora e a probabilidade de rejeição cai consideravelmente, por este motivo gostaríamos de iniciar o quanto antes"
"Tudo bem, o senhor pode me passar os exames e farei, como minha mãe disse vamos ajudar em tudo, e com sorte voltar a nossa vida normal logo"
"Ótimo, na recepção vou passar os exames que preciso, até lá vocês podem ir se organizando para quando ele tiver alta, assim que as taxas de potássio se estabilizarem tentaremos a diálise em casa, ela será realizada no período noturno, mas não se preocupem nossas enfermeiras darão todo o suporte necessário"
Olho no relógio, percebo que estou super atrasada, tenho vários compromissos hoje, e ainda tenho o problema do insuportável do Scott, meu Deus, como a vida pode ficar tão bagunçada em um único dia, preparo para me despedir.
"Mãe, eu vou precisar ir embora, minha agenda está bem cheia, você quer uma carona? Te deixo no escritório"
"Sam, eu agradeço, mas pedi uma folga hoje, vou aproveitar para comprar roupas de cama, toalhas e tudo que ele vai precisar, não quero ser pega de surpresa, mas uma vez"
"Tudo bem, bom "pai"" como é difícil falar isso - "nos vemos mais tarde, vocês vão ficar na minha casa, já conversei com a mamãe e minha casa será melhor" olho para minha mãe, ela sabe que não vou mudar de ideia, vou ajuda lá, e ficando em casa será melhor para todos.
"Filha muito obrigado, eu sei que não mereço, e perdão por tudo" percebo uma lágrima escorrendo, será que ele realmente sente muito? Bom agora não tenho tempo para pensar.
"Tudo bem pai, depois vemos isso, doutor muito obrigada, vamos mãe?"
"Vamos, Renato eu volto na visita da tarde, precisa de algo?"
"Não está tudo bem"
"Obrigada doutor"
"Imagina, esse é meu trabalho, eu acompanho vocês até a recepção para passar a relação de documento"
Saímos e logo vemos um balcão, Doutor Bruno pega um bloco e começa a anotar os exames.
"Meninas, são esses exames, todos simples. Assim que tiverem os resultados podemos prosseguir"
"Ok, nós vamos fazer o mais rápido possível". Já impaciente olho para minha mãe, e ela percebe que não consigo mais ficar naquele lugar, tudo é muito novo, e o dia mal começou.
"Doutor Bruno, muito obrigada mais uma vez, eu volto no fim do dia para verificar como ele está, e saber dos novos procedimentos para a alta, vamos fazer tudo que estiver ao nosso alcance". Minha mãe é incrível, sempre me surpreendendo com sua bondade.
"Imagino que não seja algo fácil, mas se serve de consolo estou acompanhando o caso dele desde o início, e é visível o arrependimento, sei que não muda nada, mas vocês podem ter um novo começo como família"
"Podemos tentar, bom realmente preciso ir mãe, você consegue se virar durante o dia, vou tentar passar aqui a tarde e levo você embora". Nos despedimos e desço apressada, preciso respirar e me acalmar antes de começar meu dia.
Espero que não tenha nenhuma nova surpresa.
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Devaneios de uma mulher de 30
RomanceSamantha, é uma jovem prestes a completar trinta anos, cheia de vida e projetos. Com temperamento difícil, muitas vezes acaba por se isolar no seu mundo perfeito, mas algo inesperado acontece e a tira do chão, fazendo pensar e reviver seu passado, e...