Capítulo Quatro

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"E quando eu percebi ... Ela já estava tomando conta de mim".

- Você não ama ninguém além de si mesma! - a voz dela estava raivosa - Nunca mais mexa nas minhas coisas!

Ahh, olá. Desculpe, eu não vi você aí. Como está? E eu? Ahh ... sim, eu estou cansada. Você estava curioso para saber o que estava acontecendo há alguns segundos antes? Pois bem, não fique, eu lhe digo: estamos brigando.

Não pense que a minha relação de adoção é fácil, pois não é. Mas veja ... minha amiga de infância está se aproximando.

- Por que está chorando? - era a primeira vez que a voz dela soava naquele dia - A culpa foi sua.

- A culpa ... a culpa não foi ... Não foi minha. Eu não comi ... nada.

Cada frase que saía de minha boca era acompanhada com mais uma forte fungada por culpa do choro e de meu nariz que escorria cada vez mais.

Tudo havia acontecido ali: no chão frio do banheiro em que eu estava agora. À minha volta havia os pedaços de papéis que, outrora formavam uma carta tão bela - agora representavam meu coração. Partido e maltratado assim como aquilo que deveria ter sido marcado e guardado para lembrar o aniversário de dias atrás. Minha mente de criança ainda não havia entendido tudo aquilo que, de fato, ocorrido ... quero dizer: até ontem tudo estava bem, então por que essa mudança repentina?

Assim como para ela, independente do que eu falasse minha amiga de infância continuava com a expressão de não estar acreditando em nada. A típica expressão incrédula que consegue irritar qualquer alma que habite este planeta. No entanto algo diferente aconteceu, um brilho peculiar passou por seus olhos, parecia que havia tido um choque de alta inteligência ou descoberto algo que havia ignorado. Subitamente ela agarrou minha mão e me puxou para fora do cômodo.

- Para onde estamos indo? - minha voz estava em um misto de espanto e tristeza pelo o que havia me acontecido. Tentava secar minhas lágrimas com o braço que estava livre embora cada vez que fungasse parecesse que eu estava tirando a água de uma inundação de meu nariz.

- Há algo que podemos fazer! Algo que vai te aliviar de toda essa dor. - ela me disse com a voz animada - Pegue. Coma, você vai gostar.

Você se recordaria de sua infância em que sua mãe lhe dizia: ' nunca aceite comida de estranhos '? Pois é, mas o que fazer quando não é um estranho que está te oferecendo mas você sente que aquilo que lhe é oferecido é negado até mesmo pelos pássaros?

Independente de sua conclusão naquele momento eu simplesmente peguei as frutas, não estava com fome mas o fiz para agradar minha amiga. Não era como se eu fosse uma imbecil. Sabia exatamente o que eu lá estava sugerindo e, mais importante que isso, sabia o que eu queria.

- Criança! Venha. - ouvir a voz de minha responsável naquele momento foi inesperado. Eu estava no quarto, deveria ser pouco mais de duas horas da tarde, meu nariz estava em uma coloração estranha e meus olhos vermelhos. - Eu liguei para seu pai e ele disse... disse que havia comprado duas caixas de leite condensado e que havia comido uma essa manhã antes de sair. E bem, que havia deixado a minha no congelador.

O fato foi que independente de ter notado ou não que eu era inocente, o pedido de desculpas foi ouvido por mim, talvez algum tinha eu tenha duvidado da veracidade daquelas palavras visto que eu sempre recebia a culpa por atos que obviamente não era possíveis de eu cometer. A não ser que você ache que uma criança de nove anos consegue destruir um concreto sozinha... ou arranhar coisas sendo que estava trancada dentro do... ah me desculpe. Eu estou deixando minha cabeça ser tomada pela fúria momentânea e dizendo fatos que acontecerão apenas em um futuro próximo. Desculpe.

Retomando ao presente - ou como queira intitular - eu apenas permaneci encarando ela sem saber muito o que fazer. Não era como se eu fosse ignorante, pelo contrário - minha inteligência era mediana e ótima para alguém de nove anos. O real problema era que eu apenas não sabia interpretar muito bem qualquer frase ou ação quando o assunto em questão era a minha responsável. Não era como se era pudesse prever como ela iria agir, algo que me irritava profundamente - a propósito.

De qualquer forma ela me sorriu e saiu, parecia satisfeita consigo mesma. Uma atitude comum entre nós - humanos -, não é? Passar por cima dos outros ou destruir seus sentimentos e então achar que um simples: ' Oh, lamento. ' e um sorrisinho pode tudo resolver. E as pessoas sorriem de volta e dizem: ' Não se preocupe, está tudo bem. ', besteira. Não está nada bem. Eu mesma fiz isso um milhão de vezes e por isso o digo: fazemos sem nem ao menos perceber. Já dizia o grande Maquiavel: " O homem é mau por natureza, ao menos que precise ser bom ".

Você concorda com ele? Ou prefere seguir o também de similar esplendor Rousseau com sua teoria de que: " O homem é bom por natureza, é a sociedade que o corrompe "? Ou prefere ainda se manter entre os dois pensamentos tal como eu? Você deverá estar se perguntando; ' Como seguir os dois ao mesmo tempo? ', a conclusão é simples meu caro:

Existe seres humanos e seres humanos. Crianças que são de fato boas e que, graças aos estereótipos e preconceitos da sociedade tornam-se um ser humano terrível. E existe também aqueles famosos lobos em carne de cordeiro. Se é que você me entende. Quero dizer, é preciso bastante reflexão para afirmar que um dos dois pensadores possuía um dogma perfeito e inquestionável, afinal o que de fato seria algo bom e algo mau?

Isto é, é fácil se afirmar que um leão que mata uma zebra seja mau. No entanto será que essa concepção não mudaria se colocássemos em paralelo a isso o fato de que ele mata apenas para se alimentar e que esse é o ciclo da natureza?

Você percebeu aonde quero chegar? É exatamente isso, não há conclusão correta. Nenhuma afirmação ou verdade pode ser considerada um dogma absoluto. Por isso afirmamos também que nada está livre de questionamentos. Mas vamos voltar para minha narração sobre o ontem.

Logo após minha responsável sair, meu estômago roncou e eu encarei o forno aonde meu almoço me aguardava. Corri para o banheiro imediatamente quando enfim lembrei das frutinhas que havia guardado no quarto junto de uma carta. Rapidamente fui para lá, as peguei e então me dirigi novamente ao vaso sanitário. Não precisava mais daquilo.

Me preparei para o almoço após lavar as mãos. Não havia questionado muito o que havia acontecido. Eu estava feliz novamente pois minha responsável estava feliz, era o que bastava. Contudo minha amiga mantinha um sorriso irônico nos lábios quando veio até mim, era perceptível seu conhecimento sobre as frutas venenosas que eu havia rejeitado assim como sobre o buraco negro se formando e fortalecendo em meu peito, cujo qual os sintomas eu só iria vir a notar anos mais tarde.







Gente, eu queria fazer uma nota sobre esse capítulo: no fundo do quintal onde essa garotinha mora (nesse capítulo agora com a idade de 9 anos) há algumas plantas que pássaros não comem. Ela diz isso porque são frutas venenosas e como sabemos pássaros são inteligentes. Mas também apesar dela ter pego, ela nunca comeu. Em nenhum momento — digo e repito, em nenhum momento ela queria comer aquilo, ela sabia muito bem o que eram aquelas frutas. No entanto, sua amiga também e foi exatamente por isso que ela ofereceu essas frutas gostosinhas para a garotinha.

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