Capítulo Oito - "Despedregar"

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Se alguém visse a cena, certamente riria muito. Afinal, quem já viu um sabugo de milho erudito pilotar uma carroça?

- Visconde, para de fazer pose e dá um jeito de acelerar! Nesse ritmo, chegaremos de madrugada ao sítio – reclamou a impaciente Emília.

- Calma, Marquesa, estou tentando convencer a Vagarosa a ser mais ágil – respondeu o Visconde.

- Que convencer que nada! Vagarosa tem que fazer jus às hortaliças fresquinhas que come da horta da Tia Nastácia todos os dias e ao cuidado que o Zé Carijó tem com ela. Acelera aí, minha filha!

- Calma, Emília, desse jeito o Visconde ficará mais nervoso ainda, além do medo que estamos sentindo, e não conseguirá conduzir a carroça – disse Gustavo, tentando contornar a situação.

- Medo? Quem disse que eu tenho medo, Gustavo? Eu sou a Marquesa de Rabicó, a Condessa de Três Estrelinhas, a Dadeira de Ideias mais Fantástica que já houve...

Nem bem terminou de discursar, a Marquesa Emília e a carroça deu um "arranque" que a fez cair sentada no feno, arrancando risadas de Gustavo. O Visconde, com cara de tenso, se desdobrava para pilotar a carroça com segurança.

Embora o clima estivesse nublado e tenso, havia um vento que não era muito costumeiro para aquele horário do dia.

- Por aqui sempre venta assim? – indagou o garoto.

- É "óbovo" que sim, Gustavo. No mundo real não venta? – respondeu Emília, ainda brava por ele ter rido dela.

- Ué, venta, mas é que aqui no sítio um vento pode não ser apenas um vento, não é mesmo?

- Ah, sim, o vento será o quê além de vento, ô cara de coruja esbugalhada?

- Marquesa, o vento pode ser sinal de Saci, Emília. É isso que Gustavo está querendo dizer – disse o assertivo Visconde.

Mal fechou a boca, o vento começou a ficar mais forte, a ponto de zunir nos ouvidos. Gustavo e Emília olharam-se assustados enquanto o Visconde segurava seu chapéu com uma mão e as rédeas da Vagarosa com a outra.

- Pessoal, desse lado tem um bambuzal, o vento zunindo nos ouvidos e as folhas querendo formar um redemoinho. Isso só pode ser...

Olharam para trás na estrada e gritaram juntos:

- O SACIIIII!

O redemoinho vinha com muita força e estava maior do que já tinham visto. Emília e Gustavo tentavam se segurar nas laterais da carroça enquanto o Visconde enroscava as rédeas nos braços. A pobre Vagarosa tinha dificuldade de firmar suas patas no chão para seguir trotando.

- Eu falei que podia ser o Saci! E agora, o que faremos? – disse Gustavo, sem conseguir abrir os olhos devido à grande nuvem de poeira que se levantava.

- O Saci sempre foi nosso amigo, mas agora, com tudo isso que a Cuca vem fazendo, parece que as coisas mudaram – observou Emília.

- Companheiros, terei de parar a carroça em algum lugar. A Vagarosa não vai aguentar – gritou o Visconde, quase voando por ser tão magrinho.

- Não para, Visconde! Vamos pensar em algo – afirmou Gustavo.

O redemoinho do Saci estava muito próximo deles e ganhando cada vez mais força e altura, desestabilizando o trio que lutava para se manter em movimento e em segurança, sem cair da carroça ou voar devido aos fortes ventos. Risadas começaram a ser ouvidas, e o Saci exclamou que pegaria o trio.

Gustavo abaixou a cabeça para impedir que seus olhos fossem cheios de poeira e pensava insistentemente no que faria para sair daquela situação e livrar seus amigos. Foi aí que viu uma peneira no fundo da carroça com uma cruzeta e lembrou-se que essa era a forma eficaz de pegar um Saci, ensinada por Tio Barnabé ao Pedrinho, e que já rendeu ótimas capturas ao menino.

- Já sei! – gritou empolgado o garoto.

- Sabe do que, ô cara de coruja empoeirada? – retrucou Emília, segurando-se firmemente à carroça para não cair.

Gustavo então levantou a peneira com a cruzeta bem alta e gritou:

- Saci, agora é a minha vez de pegar você e deixar na garrafa para sempre!

O Saci arregalou-se e, com cara de muito medo, foi diminuindo seu redemoinho e entrou para o bambuzal.

- Ma... Ma... Ma... – gaguejou o Visconde. – Você conseguiu, garoto!

- Incrível, cara de coruja esbugalhada! Era exatamente o que eu ia sugerir que fizesse – disse Emília, limpando seu vestidinho da poeira que pegou.

Todos deram uma grande risada, e o Visconde acelerou a Vagarosa.

- Vamos, meus caros. Não podemos perder tempo aqui na estrada; está tudo muito perigoso.

Ao chegarem de volta ao Sítio do Picapau Amarelo, o trio correu para perto das estátuas. Ficaram de frente com elas e uma dúvida cruel rendeu boa discussão entre eles.

- Gente, mas e agora, qual vamos desempedrar primeiro? – questionou Gustavo, com cara de grande dúvida.

- É "óbovo" que a Narizinho, né? Afinal, eu já não aguento mais de saudade dela – disse Emília.

- Marquesa, eu acho que deveríamos desempedrar Dona Benta. Afinal, ela é a dona de todo o sítio – rebateu o Visconde.

- Nananinanão, Visconde! E, para começo de conversa, é "despedregar"!

- Espera aí, pessoal, pensem comigo. Seria melhor desempedrarmos o Pedrinho, porque ele conhece muito bem o capoeirão, é um menino muito corajoso e nos ajudaria muito a salvar todo mundo – acrescentou Gustavo.

- Elementar, meu jovem!

- Elementar uma ova! Que haja democracia! Eu quero é a Narizinho e pronto – brigou Emília.

- Marquesa, todos serão desempedrados...

- "Despedregados" – interrompeu Emília.

- Que seja, Marquesa. Todos serão "despedregados". A questão agora é uma estratégia de quem será o primeiro e que possa efetivamente nos ajudar, porque temos poucas florezinhas azuis até plantarmos mais – explicou o Visconde.

- É, Emília. Além disso, precisamos entender que todos são igualmente importantes e merecem nossa ajuda. Porém, o momento é de pensarmos em quem ajudará mais até que todos sejam salvos – observou Gustavo.

- Tá bom, tá bom, tá bom. Como sou uma nobre Marquesa, eu abro mão do meu desejo pessoal pelo bem de todos – disse a Marquesa Emília.

- Então, Emília, me passe as florezinhas – pediu o Visconde.

- Negativo, Sabugo Bolorento. Perdi uma luta, mas não a guerra. Eu que "despedrego" o Pedrinho.

Visconde e Gustavo se olharam, balançando os ombros, achando engraçadas as atitudes de Emília enquanto a observavam separar um punhado das flores para plantar e outro para jogar no Pedrinho.

- Muito bem, Senhor Pedro Encerrabodes de Oliveira, você está "despedregado", e isso apenas porque sou da realeza e abri mão da minha vontade em prol de todos – disse Emília antes de jogar as flores.

Ao jogar as flores azuis, todos olharam com cara de espanto enquanto a pedra se transformava em carne e osso novamente e, aos poucos, Pedrinho tomava forma ali, na frente deles.

- Pedrinho, como sonhei em conhecer você – disse Gustavo com os olhos marejados em lágrimas.

- Cadê a Cuca? Aquela bruxa me paga! – disse o valente Pedrinho ao despedregar.

O Sítio do Picapau Amarelo em ApurosOnde histórias criam vida. Descubra agora