Um Passo em Falso

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- Pra você é fácil. Você não precisa fazer muito esforço para conseguir.


- Você acha que só porque tenho uma beleza que todos invejam e querem consumir, a minha vida se torna mais fácil?


- Com certeza é bem mais fácil do que a minha. Já sofri muito por sequer ser considerado bonitinho.


- Se você soubesse estaria agradecendo por não carregar esse peso. E além do mais você tem sim uma beleza. Entretanto, você não sabe o que é ter as pessoas a sua volta e ter certeza de que elas estão ali apenas para exibir o "amigo" que elas tem. As pessoas esquecem que também tenho sentimentos, e quando descobrem minha diferença as coisas ficam piores. Aprendi a ser frio com o mundo. Aprendi a ser distante, a não demonstrar quem realmente sou. A me esconder. Eu daria tudo para estar no seu lugar.


- Não, não daria não. Se você acha difícil pra você, imagina pra mim? Fui vaiado, chingado, espancado, e tudo o mais simplesmente por que não me encaixo nessa sociedade. São muito poucos os que posso chamar de amigos. A maior parte da minha vida eu passei sozinho, sem um apoio. Nem meus pais perceberam o que acontecia com o próprio filho. Mas assim como você, eu aprendi a não demonstrar.


- Você pelo menos encontrou amigos sinceros. Eu não, me senti, e muitas vezes me sinto até hoje como uma peça rara em uma vitrine. Todo mundo acha que só porque tenho essa maldida beleza, eu sou burro, ou sou promíscuo, e que passo por cima de muitos.


- Enquanto você é a jóia rara, eu sou um monstro num circo de horrores. Sirvo apenas para entreter. Muitos que se aproximavam, ou fingiam compaixão ou tinham dó de mim. Eu odeio que sintam pena de mim. Esse sentimento diminui as pessoas. Pra você, passar numa entrevista, conseguir um trabalho é bem mais fácil.


- Pode até ser fácil conseguir, o problema é manter. Não sabe o assédio que passo, seja das mulheres, quanto dos homens. Também já sofri por tudo isso. Não é fácil pra mim, nunca foi. E saber que talvez eu nunca encontre alguém que goste de mim pelo que sou.


- Você se engana...


- Oi?


- Nada.


Como eu havia dito, nunca deixaria transparecer o que sentia. E por mais que eu negasse, parte de minha atração por ele vinha de sua beleza única. Era verdade, era uma beleza que todos invejavam, mas eu não me preocupava com a sua beleza externa. Zelava por quem ele era. Uma pessoa meiga, de bom coração, um anjo em todos os sentidos. Um pouco calculista, frio, mas ainda tinha mais qualidades que defeitos. Sentia dentro de mim que deveria cuidar dele. Que deveria protegê-lo. Sabia que sua caminhada até ali não tinha sido fácil. Ele tinha razão, lidar com a falsidade e com a cobiça era bem mais difícil de lidar do que com o peso que eu carreguei. Mas também não diminuia o que eu já tinha passado. Queria tocá-lo, abraçá-lo, beijá-lo, mas eu não sabia como ele reagiria. Apenas olhava-o a observar o horizonte, talvez na busca de uma resposta. Seu rosto, então se volta pra mim. Seus olhos verdes encaram os meus. Perco o ar, meu corpo todo congela. Sentados um ao lado do outro, conseguia sentir o calor que emanava dele. Meu corpo ficou tenso quando percebi que ele se aproximava mais e mais. Engoli em seco. Não sabia o que fazer. Meu coração explodia em meus ouvidos, de tão rápido que ele batia. Então aconteceu, ele caiu em meus braços, num abraço desajeitado. Peguei-o e percebi que ele havia desmaiado. Sua pele estava pálida, seu corpo frio. Ele provavelmente havia deixado de tomar seu remédio mais uma vez. Sorte que carregava eles comigo. Sabia que ele era um cabeça de vento. Esperei até que ele voltasse a si. Aproveitei aquele momento juntos, talvez seria o único e último que teria tão próximo a ele. Ele deitado em meu colo, desmaiado, com os cabelos negros caindo delicadamente por seu rosto. Afastei-os de seu rosto, quando me dei conta, acariciava com delicadeza sua face e cabelos. Ele era realmente muito lindo. Mas eu brigava intensamente dentro de mim para não me ater a isso. Eu não queria ser como os outros. Eu não seria como muitos foram na vida dele. Viajava em meus pensamentos quando o percebi olhando pra mim. Seus olhos pareciam assustados, só então notei que ainda o acariciava. Ele se levantou sem dizer uma palavra. Peguei o remédio e o entreguei. Ele o pegou tomou a seco e guardou no bolso.


- Não acha melhor...


- Não - respondeu ele secamente me interrompendo e sem olhar para mim. - Eu já vou. Acho melhor a gente não se ver mais.


Aquilo doeu em mim. Por que eu não me contive? Por que deixei transparecer? Agora ele achava que eu era um aproveitador, que também agia como muitos. E pior que supusera que ele também era como eu.


- Me...


- Não se desculpe. Adeus Mikail.


Eu não reagi. Fiquei parado naquele banco enquanto ele partia, enquanto ele me deixava para trás. Cada vez que ele se distanciava, sentia parte de mim morrer por dentro. Fiquei naquele banco daquela praça mais algumas horas. Eu não chorava, eu simplesmente estava lá, com aquela dor me consumindo. Não havia mais nada para fazer. Me levantei e a passos lentos eu caminhei para minha casa. No trajeto eu conseguia vê-lo. Sentado aquela tarde naquela sorveteria, tomando sorvete de pistache com passas. Demos muita risada. Não estávamos só eu e ele. Tinha levado alguns de meus amigos, mas para mim parecia que eles tinham sumido. Pele menos para mim. Vi o ponto de ônibus que eu me abriguei e sem querer me encontrei com ele. Mesmo eu estando ensopado ele me emprestou sua jaqueta para me aquecer. Consegui sentir o perfume dele com aquelas lembranças.


Entrei em casa. Eram por volta das 22 horas. Meus pais logo vieram me fazendo as típicas perguntas: Onde você esteve? O que aconteceu? Por que não ligou? Você acha isso certo?


Respondi a todas sem o menor entusiasmo. Simplesmente subi tomei meu banho e fui para o meu quarto. Deitei e fiquei ali olhando pela janela, observando de longe a represa onde horas atrás estivemos. E tudo voltando a minha mente como um maremoto. Ficava pensando. Como ele faria para não me encontrar mais. Estudávamos na mesma faculdade, na mesma sala, na mesma turma. E estávamos fazendo o grupo de teatro. Como seria agora? Como eu iria encará-lo?


Me debatia por dentro, relembrando cada segundo daquela despedida. Chorar já não fazia mais o meu feitio. Minhas lágrimas secaram havia muito tempo. Mas isso não significava que doía menos. Talvez doesse mais, por ficar preso, por não se esvair naquele líquido quente a banhar a face esfriando o coração.


Vi o Sol nascer. Seria lindo se não fosse trágico. Em breve teria de levantar, mas temia o que aquele dia poderia acarretar. Não queria mais chagas para mim. Já possuía muitas das quais ainda não tinham sequer parado de sangrar. Mas também não agiria como um medroso. Eu tinha e seria forte.


Levantei, coloquei a música mais alegre que tinha em meu celular e deixei tocar. Meu coração deu um nó. Aquela pose de que tudo ia ficar bem estava me machucando. O meu clima não era de alegria, eu não iria ser capaz de sorrir com aquela dor na alma. Mas eu faria aquilo, fossem quais fossem as consequências. Treinei os meus melhores sorrisos enquanto me arrumava.


Desci. Meus pais já haviam saído. Mesmo bravos comigo, não esqueciam de deixar meu café pronto. Embora aquela super proteção me irritasse um pouco também era reconfortante. Aquilo me fez ter mais um aperto no peito. Lembrei das demasiadas brigas que tinham ocorrido no ano passado. E tudo porque eu nāo conseguira me manter em silêncio. Por mais que eu me negasse eu me sentia culpado. Aquilo doía em mim. Minha mãe adoecera muito por conta dessas brigas. Na verdade por conta do motivo das brigas. Fiquei rebelde achando que eles eram obrigados a aceitar aquilo que nem eu tinha aceitado direito. Ainda carregava minhas dúvidas. Ainda carregava o peso do preconceito interno para comigo mesmo. E eu não entendia o porque. Eu não via como erro, não enxergava dessa forma, mas ainda me sentia errando com os meus pais.

Olhos que SentemOnde histórias criam vida. Descubra agora