Mundo de dentro

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Estava escuro e apesar de ser repressor era bom. Ali estava eu no meio de uma escuridão sem fim. Entretanto eu não consiguia entender porque tinha uma vontade louca de chorar. Não entendia porque sentia como se um peso se instalasse em minha garganta. Como palavras presas. Mas por mais que eu tentasse me deixar esvair nas lágrimas elas se prendiam, se recusavam a sair. Muita coisa tinha acontecido naqueles últimos dias. Era como se eu estivesse perdendo parte de quem eu era. Como se dia após dia eu estivesse deixando meu eu para trás. Me abandonando. Me esquecendo. Esquecendo de algo. Esquecendo de mim mesmo. De minha essência. Eu não consiguia entender. A cada dia que acordava era como se uma peça estivesse faltando, como se eu não tivesse captado algum movimento, alguma ação, alguma cena. Como se o filme já estivesse gasto demais para registrar qualquer informação e as lembranças viessem a mim incompletas. Embora eu tivesse absoluta certeza de que em minha memória nada faltava. Ou será que faltava? Esse quebra cabeça virara de tal forma que eu já não consiguia mais montá-lo e parecia que as peças haviam sido trocadas. Tinha algo que não era meu naquilo tudo, algo que não me pertencia e tinha entrado em minha vida de mansinho. E que já havia quase dominado todo o espaço era como se não tivesse mais como retroceder. Era questão de esperar o resultado desse efeito dominó. Já não encontrava mais nada que me satisfizesse. Nada parecia suprir aquilo que eu mesmo não sabia que faltava. Já havia analisado todas as proposições cabíveis, mas ainda não encontrara o que viria a ser a premissa verdadeira. Perdi, e não consiguia achar. Morri, e não percebi. Dentro de mim existia um túmulo. Coberto pelo musgo e sob um céu escuro. Não era noite nem dia. Caem cinzas do céu e o cheiro de lodo se fazia presente. Aqui e ali algumas sombras se moviam. E querendo ou não me sintia confortável. Sintia-me seguro nesse território desconhecido. Sem vertentes, sem pilastras. Só um terreno escuro e úmido, com árvores secas e o tumulo protegido por um cedro de folhas escuras, não pretas, mas verdes. Praticamente a pura contradição, a vida num mundo morto. Talvez sejam os excessos de crenças, e palavras não ditas, não pronunciadas a me sufocar, mas que enquanto repercurtiam dentro de mim, me protegiam, me sustentavam. Caminhava por aquele terreno estranho, percebendo fantasmas errantes que clamavam por mim. Escutava-lhes as vozes, mas nada podia fazer. Quando os tocava se transformavam em areia e eram levados por um vento inexistente. Recuei. Não queria que desaparecessem. Queria que ficassem ali. Queria me sentir vivo. Sem eles me sintia como se eu deixasse de existir e todo o meu mundo não passasse de uma história contada por outro alguém. Queria que as pessoas me precebessem vivo. Embora por dentro eu não tivesse mais certeza do quão vivo ou não eu estava. Olhava no espelho e via outro alguém. Talvez o tempo tenha me feito esquecer quem fui para dar uma chance para eu reescrever quem era. Ou podia ser uma peça de minha mente para descobrir o quanto sabia a respeito de mim mesmo. Tinha um peso que me prendia ao chão impedindo-me de olhar para o alto, de tornar real os sonhos que já tive um dia. Mas ainda assim me mantinha. Era como se eu perdesse tudo isso e perdesse o que restava de mim. Não desejava isso. Não queria ter que me descobrir mais uma vez. E se tudo viesse para o mesmo ponto? E se não? Cada vez que tentava me proteger mais vulnerável me sintia, mas não sabia dizer em relação a que ou a quem. Só sabia que estava no limite da consciência, no limite da razão. E pensar estava esgotando o resto de forças que ainda me restavam. E por mais insuportável que tudo isso pudesse parecer eu me sentia bem de certa forma. Eu me sentia cedendo para todo aquele peso, para aquela carga. Mas também sentia que devia lutar. Que deveria me encontrar. Uma imagem me veio a mente. Louis. E como num passe de mágica, um dos fantasmas tomou a forma dele. Parecia tão real que se eu não tivesse visto o fantasma tomar sua forma eu teria acreditado que eu estava em sua presença. Ele trazia uma tristeza profunda em seu olhar. Eu vi os olhos que eu vira naquela tarde. Do medo, da distância, do desespero. Aquilo me fez cair de joelhos, percebi os fantasmas restantes se aproximarem de mim. A tristeza invadiu o meu peito e lembranças vieram a minha mente. As almas pareciam chiar, pareciam comemorar. Cada um deles se transformando nas pessoas que eu me sentia em débito. Meus pais surgiram na minha frente. E me encaravam como se estivessem totalmente decepcionados comigo. Me olhavam como a maior fonte de desgosto e sofrimento. Comecei a chorar.

"Me perdoem. Me desculpa. Eu nunca consegui dizer isso antes. Mas eu os amo e sofro muito por tudo isso. Mas eu nunca escolhi isso para mim, e se eu pudesse eu não teria escolhido essa minha condição. Me perdoem por não ser o filho que vocês imaginaram. Eu sou limitado. Eu sou errado. Nunca quis decepcioná-los. Nunca quis causar tanto sofrimento e dor. Só quis que me compreendessem, que me amassem, que me amparassem. Me desculpe mãe, eu nunca quis lhe deixar enferma desta forma, eu nunca quis que isso acontecesse, mas não queria sofrer sem apoio, sem uma ajuda. Entenda, eu sofro dia após dia por ser diferente, por ter essa condição. Sofro por me sentir culpado, por não lhes dar orgulho, por ter decepcionado vocês, por ser quem sou. Me perdoe por eu ser quem e como sou. Me desculpa ser mais frio, me desculpa por não conseguir ser mais aquele menino meigo que tanto me falam e me cobram. Eu não consigo mais. Eu só queria que me dessem uma trégua. Eu juro que eu tentei. Eu dei meu máximo, mas eu não consegui. Eu desisti de tantas coisas, sacrifiquei boa parte de minha vida e meus sonhos para fazê-los feliz."

Eu chorava e gritava enquanto que ao mesmo tempo revivia todas as minhas dores. Eu segurava meu peito como se uma espada estivesse cravada ali. Meus pais despareceram, mas mantiveram o mesmo olhar enquanto se desfaziam na escuridão. Uma nova imagem se formou. Diante de mim estava Alexander, trazia um sorriso carregado de veneno, ele não olhava para mim, mas sim para Louis. Embora sentisse raiva dele, tinha mais raiva de mim. Ali naquela escuridão eu estava entregue a apenas um inimigo, eu mesmo. Mas ainda assim buscava forças dentro de mim para poder defender quem amava, embora pudesse não ser recíproco.

"Deixe-o em paz. Não pense nem por um segundo que permitirei que rele um único dedo nele."

Tentei me levantar e com muito esforço consegui me por de pé, mas assim que dei o primeiro passo, meus pés enfraqueceram e meu corpo amoleceu. Caí com os joelhos naquele chão escuro. Consegui sentir o cheiro de sangue e lodo. Ao olhar para Alexander, vi que ele estava já ao lado de Louis. Estiquei ao máximo o meu braço, mas senti ele pesar. Dei um grito, quando Alexander pegou Louis pelo braço. Eles então sumiram em uma cortina de fumaça. Estava eu novamente só. Me arrastei até a lápide e lá apoei minhas costas. Era o único lugar que ainda tinha luz, embora ela estivesse bem fraca e eu conseguisse ver tentáculos da escuridão tentar entrar lá. Agarrei aos meus joelhos e chorei.

Olhos que SentemOnde histórias criam vida. Descubra agora