Peixe

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O sol já estava apontando no céu. Por mais aconchegante que a cama parecesse já era hora de levantar, afinal alguém precisava alimentar as bocas que residiam naquela casa. Ele se levantou, vestiu sua roupa de trabalho - que nada mais era do que um conjunto encardido e rasgado - juntou sua tralha e saiu.

Na janela estava o olhar dela. Era o amor de sua vida, e não importava o quanto eles já tivessem sido castigados pelo tempo, ele sempre a amaria. E isso também incluía aquele que estava se preparando para sair. Agora só faltava alguns dias, e a barriga já estava a ponto de explodir.

Ele não gostava da ideia de sair de casa com ela naquelas condições. Era perigoso, a cria podia decidir sair a qualquer momento e não havia nenhum vizinho perto o suficiente para a ouvir pedir ajuda caso precisasse. Mas não tinha muito o que fazer sobre isso, eles precisam comer.

O silêncio da vila era mortal. Ninguém estava saindo, o que o deixava com o sentimento de intruso cada vez mais forte. Na sua cabeça todas as desculpas estavam prontas, afinal ele não queria brigar com ninguém, mas também não queria ser julgado sem antes explanar os motivos.

A criança - ninguém iria julgar um pai por suas escolhas. A segunda opção não estava viável, nem o tempo e nem a terra estavam colaborando. Aquela vizinha velha com certeza é uma bruxa para fazer com que tudo crescesse tanto e tão bonito, e além do mais ela não compartilhava com nenhum vizinho, então ele não sentia remorso algum de desejar que tudo aquilo pegasse fogo.

A caminhada até o barco era quase uma via sacra, onde as críticas e torturas partiam todas de sua cabeça contra ele mesmo, e a cruz que ele carregava pesava demais. Talvez fosse mais fácil apenas subir no barco e não voltar mais, mas ele não podia fazer, não por amor a quem fica, mas pela responsabilidade e honra.

Mas não era falta de amor, longe disso, não era isso que ele quis dizer. Ele a amava, até demais, mas as responsabilidades de uma vida a dois era algo que jamais passara em sua cabeça quando era jovem. Talvez tivesse desistido de alguns sonhos, mas era algo que a vida iria se encarregar mais cedo ou mais tarde, afinal a quantidade de estudo necessária pra isso era mais alta do que ele jamais poderia suportar.

Chegando no barco, arrumou suas coisas e partiu. Deixou os outros barcos parados ao longe, balançando sobre uma água que só ele se atrevia a movimentar, sendo acompanhado apenas por um som metálico de motor e a vontade de terminar tudo isso logo.

Foi metódico: chegou no ponto que sempre costumava pescar; jogou sua rede; puxou; repetiu. A quantidade era grande, afinal a época contribuia, mas ele não precisava de tanto. Pegou o necessário, soltou o restante, guardou as coisas e voltou.

Chegou na praia novamente e se dirigiu para uma grande mesa de madeira, corroída pelo tempo mas que ainda servia bem em sua função. Em outros tempos muitos estariam ali, limpando seus pescados antes de retornar para suas casas. Rindo, bebendo, brigando. Algumas vezes tinha mais sangue de gente do que de peixe.

Naquele momento não havia ninguém. Talvez tivessem olhos julgadores ao longe, pelo menos era o que dizia para si mesmo em sua cabeça. Tentou ser o mais rápido possível. Era habilidoso com a faca, já sabia os pontos que deveria atacar.

Até que ele pegou um. Sua barriga estava vermelha e inchada. Ele sabia o que aquilo significava e o que deveria esperar que tivesse dentro. Ele sabia que já havia o aviso. Agora não é época pra isso - repetia em sua cabeça. Antes de cortar, deu uma boa olhada em seus olhos.

Eram amarelos; bem abertos; julgadores. Ela só estava tentando procriar, afinal era sua época pra isso, mas ele também só estava tentando comer. Repetiu todo seu discurso preparado. Disse em voz alta para caso alguém estivesse perto observando. Passou sua faca impiedosamente, observando os ovos caírem sobre a madeira velha.

Ele não queria estar fazendo aquilo, mas precisava. Repetiu o discurso de novo pra garantir que Deus também ouvisse seu pedido de desculpas. Caminhou novamente até sua casa, imaginando que a cada canto havia o olhar de alguém o acompanhando. Talvez agora até despertando o desejo de fazer o mesmo, para que se sentissem mutuamente menos culpados.

Chegou em casa. Abriu a porta. Ela estava caída sobre a madeira velha. Seu sangue vermelho escorria sobre tudo. Seus olhos castanhos estavam lá; bem abertos; julgadores. As lágrimas dele escorriam tão rapidamente quanto sua vontade de estar vivo. Seu grito foi tão agoniante que talvez despertasse alguma empatia na velha bruxa.

Repetiu seu discurso tentando ser ouvido por ela, talvez em busca de perdão, ou quem sabe para que ele mesmo ouvisse e pudesse se perdoar. Tudo o que ele pensava era alguém precisava avisar.

Alguém precisava avisar a todos.

Avisar que agora não era época pra isso

Contos de um dia de chuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora