Arremesso

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Já era madrugada. Caminhei melancolicamente até o píer e me escorei na cerca de madeira que separava o deque da água. Apoiei meu caixote de madeira e o abri para conferir se realmente estava tudo ali.

Preparei metodicamente cada memória que eu iria arremessar na água hoje. Eu precisava ver tudo aquilo no fundo do mar para que pudesse me ver livre de todos os sentimentos que as lembranças me traziam, mas não sem antes dar uma última conferida para promover meu auto martírio.

Coloquei minha aliança ali. Lembro-me do meu casamento com carinho. Era um dia ensolarado e nos casamos em uma chácara especialmente escolhida para a ocasião. Tínhamos que nos casar ali pois existia uma árvore com flores roxas exatamente da mesma espécie que existia no quintal da casa dela.

Foi debaixo daquelas flores, tão encantadoras que pareciam terem sido pintadas a mão, que juramos amor eterno independente dos problemas que viessem. Mas não foi bem isso que aconteceu, afinal na minha recaída a primeira coisa que ela fez foi me abandonar.

Eu realmente me esforcei para deixar tudo limpo, comprar roupas novas e aparar o cabelo, porém deixei de fazer novamente quando descobri que ela havia me traído com seu amigo de infância. Suas palavras eram duras, me acusando de culpado por tudo aquilo, afinal eu parecia um inválido que sequer conseguia um emprego ou fosse capaz de sair da cama.

Eu estava vivendo praticamente em um chiqueiro, mas nada daquilo me incomodava. Era como se tudo o que eu olhava fosse cinza, então que diferença fazia retirar ou não? Talvez ela estivesse certa, ela nunca foi obrigada a ficar com alguém que não correspondia na mesma alegria. O amigo de infância era bem mais divertido e bem sucedido, eu teria feito a mesma escolha no lugar dela.

Fiquei sozinho por muito tempo. Minha mãe me visitava regularmente pra tentar deixar as coisas limpas e me acalmar. Ela não me julgava e nem dizia nada, apenas me abraçava e passava cuidadosamente uma pomada nas feridas que eu abri na pele de tanto coçar. Ela chegou uma vez a dizer que eu precisava de ajuda, e até mesmo agendou e se prontificou a me levar, mas eu não conseguia fazer aquilo.

A ideia de explicar tudo pra outra pessoa me deixava ansioso. O que o terapeuta iria pensar de mim? Logo ele que era formado e tinha emprego fixo. Eu sei que ele era a ajuda, mas algo me barrava de até mesmo sair pela porta. Foi uma vitória muito grande ter conseguido chegar nesse píer.

Numa noite em que minha mãe estava de saída, o vizinho estava chegando e nos cumprimentou. Ele olhou o meu estado e teve pena, mas não aquela pena que você compartilha na internet, e sim aquela que você resolve fazer alguma coisa sobre.

Ele passou a vir na minha casa quase todas as noites. Trazia filmes para assistirmos juntos, cozinhava coisas muito mais saudáveis do que eu estava habituado a comer e até mesmo me pedia conselhos sobre como chegar na garota que ele estava apaixonado. Ele foi o amigo que eu nunca tive na vida.

Mas foi numa noite em que estava me ajudando a fazer a barba que ele me deu a fatídica notícia. Seu pai havia morrido de câncer e sua mãe estava sozinha, desamparada em outra cidade. Ele teria que se mudar mas não queria me deixar sozinho.

Insistiu que eu fosse morar com eles, mas eu não conseguia deixar de pensar que seria apenas um fardo. Ele chegou a conversar com a minha mãe pessoalmente, mas não teve acordo de minha parte. Me despedi chorando na soleira da porta, com o coração mais apertado do que quando tirei minha aliança do dedo e a deixei na gaveta.

Tudo voltou a ser bagunçado como antes. Eu precisava me livrar daqueles DVDs para que pudesse esquecer. Eu tinha que me desfazer da camiseta que ele me deu de melhores amigos para que aquelas risadas e ternura ficassem guardadas em um lugar em que não pudessem me consumir.

No meio da minha bagunça, minha mãe descobriu que estava doente. Precisava fazer tratamento intensivo no hospital durante vários meses. Meu pai, que não falava comigo há anos, me ligou para dizer que eu precisava deixá-la em paz para se tratar.

Eu jamais cobrei a presença dela. Ela sempre veio até mim por amor e de bom grado, e eu sou muito agradecido por isso. Me doeu não poder ser eu quem a acompanharia no hospital. Me doeu ainda mais não conseguir estar lá para carregar seu caixão depois que o médico deu a terrível notícia.

Coloquei todas as fotos que tinha dela na caixa, junto com os presentes que me levava todo ano. As flores que ela tinha me levado da última vez com o recado "tudo vai melhorar" ainda apodreciam no vaso em cima da mesa de jantar.

Eu estava decidido a agir. Fui ao mercado e comprei sacos de lixo e produtos de limpeza. Cheguei em casa e dei uma geral, limpando tudo. Postei uma foto sorrindo depois de muitos anos sem sequer entrar em alguma rede social.

Coloquei todas as coisas que me lembravam das pessoas que já amei em um caixote. Eu precisava deixar tudo aquilo longe da minha visão pois me consumia muito.

Consegui manter uma rotina durante alguns dias, mesmo que ainda um pouco desorganizada. Instalei um aplicativo para ver se conhecia alguém e realmente deu certo!

Ela tinha muitos gostos parecidos com os meus, e tinha hobbies muito parecidos com os que eu costumava manter antes de me perder na depressão. Conversamos muito durante dias e resolvemos marcar um encontro.

Era em um lugar muito movimentado, o que me deixou bastante ansioso. Mil coisas passaram na minha cabeça, inclusive de que ela jamais apareceria, porém ela estava lá me esperando com um sorriso no rosto.

Foi tudo perfeito. Conversamos, rimos, bebemos. A última vez em que estive tão feliz foi com meu melhor amigo, quando ele resolveu fazer um bolo para comemorar o dia em que nos conhecemos e me deu uma camiseta igual a dele escrito "melhores amigos pra sempre".

Já era tarde, então nos despedimos e fui para casa. Deitei na cama com um sorriso no rosto. Cheguei a chorar pois imaginei que eu nunca mais conseguiria me animar com alguma coisa. Comecei a pensar no futuro e conclui o que eu devia fazer.

Abri o armário e a caixa estava lá. Era isso o que eu precisava fazer. Peguei o caixote e fui ao píer com passos firmes. Revisitei cada memória enquanto conferia as coisas que tinha levado. Chorei de alegria na maioria delas, afinal cada momento especial estava ali, mas não pude conter a angústia de tudo que deu errado.

Enrolei a caixa em uma corrente e a prendi em uma bola de ferro. Achei que fosse difícil conseguir uma mas são mais comuns do que eu imaginei. Me sentei na beirada do deque para observar a água.

A maré estava agitada como era de se esperar. Olhei para a imensidão do horizonte imaginando como seria ter coragem para simplesmente sair daquela cidade e ir embora pelo oceano, pra ver até onde ele iria me levar.

Talvez agora eu fosse conseguir, sem o peso de tudo que me puxava pra baixo. Mentalizei cada um dos rostos das pessoas que eu amei. Levantei a pesada bola de ferro e a arremessei na água com toda a força que consegui juntar. A corrente correu voraz para o fundo, puxando o caixote de memórias.

Na outra ponta da corrente estava minha perna. Logo estávamos todos no fundo do mar.

Contos de um dia de chuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora