Repugnante

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Nunca imaginei que algo como aquilo pudesse realmente acontecer, ou que uma criatura daquele tamanho fosse naturalmente possível. Com o tempo livre que tive depois eu não conseguia parar de repensar cada decisão que me levou até ali.

Eu trabalhava com pesca marítima, uma profissão passada na minha família de geração em geração. Herdei um barco grande e tinha alguns funcionários que me acompanhavam nas temporadas que fazia em busca dos pescados.

Eu morava em uma cidade litorânea, bem próximo do porto. O mar me acompanhou durante toda a minha vida, desde quando eu era uma criança briguenta e mal encarada até meu casamento e nascimento da minha filha. Era triste ter que deixar minha família durante tanto tempo, mas era necessário.

Havia chegado a hora novamente e, como sempre, ficaríamos algumas semanas no mar até conseguir voltar com aquela embarcação lotada. Era a minha rotina de muitos anos então não havia novidade alguma, mas mesmo assim sempre sonhei com o dia que ganharia o suficiente para não precisar mais ter que sair para isso.

Estávamos no meio do mar quando a rede enroscou em alguma coisa. Era uma roldana com motor que puxava tudo pra cima, então para que ela não estivesse conseguindo fazer esse trabalho algo muito grande estava ali.

As águas eram de um azul muito escuro e as ondas estavam muito agitadas, então mesmo apertando os olhos e chegando o mais perto possível não dava pra ver o que poderia estar ali. Nos reunimos para pensar no que dava para ser feito.

Muitas sugestões vieram, desde cortar a corda e deixar a rede até pular no mar e desenganchar manualmente. A última parecia suicida demais porém foi a ideia mais aceita entre o grupo, então estava decidido.

Três companheiros amarraram cordas em volta do corpo, prenderam uma ponta no navio e pularam na água. O combinado era ficar atento e puxá-los caso algo de errado acontecesse. Eu preferi não me voluntariar para pular então fiquei no barco acompanhando apenas com os olhos.

Eles nadaram dificultosamente até a rede e, quando se aproximaram dela e tentaram ver o que a estava prendendo, viram que ela estava vazia. Eles fizeram um sinal com a mão para que usássemos o motor para recolher a rede e, para a surpresa de todos, isso foi feito sem dificuldade alguma.

Quando eles começaram a nadar de volta percebemos que o movimento das águas cessou e a cor do mar ficou muito mais escura, quase preta. O grupo parou de nadar e começou a olhar ao redor para ver se alguma coisa estava ali. Passou pela minha cabeça que talvez realmente tinha algo na rede porém conseguiu se soltar e agora estava rondando eles para atacar. Entretanto nada explicava a falta de movimento da água.

Nosso silêncio, que parecia combinado, foi quebrado por uma enorme batida no barco. Algo se chocou com muita força em nós fazendo com que algumas pessoas caíssem no mar. Consegui me segurar com muita dificuldade em uma das bordas mas me mantive dentro, porém a rede que tinha sido recolhida caiu ao mar novamente e quando atingiu a água algo começou a puxá-la pra frente levando o barco consigo.

As pessoas que estavam no mar começaram a ficar pra trás e eu não estava entendendo o que poderia ser aquilo, até que a ponta do barco não suportou a força com que estava sendo puxada e se quebrou, separando o barco em dois.

Eu caí na água junto com algumas pessoas, todos desesperados. Quando olhei para baixo vi que uma enorme sombra se formou e estava cada vez mais próxima. Consegui ver apenas seus enormes dentes quando sua boca abriu e engoliu absolutamente tudo.

Fiz uma descida turbulenta por algo que parecia um túnel de metrô de tão grande. Me choquei com várias coisas no caminho e senti algo afiado entrar na minha perna, logo antes de eu acabar desmaiando.

Quando acordei eu não conseguia ver absolutamente nada, então tateei meu casaco em busca da lanterna que sempre carrego em um dos bolsos. Acendi e olhei ao redor. Eu estava deitado em uma ilhota feita de restos de algo que eu não consegui definir o que era, e dava pra ver em um canto a cabine do navio flutuando.

O cheiro do lugar era insuportável, quase uma mistura de carne podre com esgoto. O lugar tinha água por todo o lado como se fosse uma lagoa com vários sulcos aparentemente feito de restos, assim como onde eu estava. Consegui apenas concluir que eu estava dentro daquela criatura que nos engoliu, seja lá o que ela fosse.

Olhei para a minha perna e tinha um pedaço de madeira atravessando minha coxa. O calor do momento ainda não tinha permitido eu sentir dor, mas aquilo provavelmente deveria estar me fazendo gritar. Procurei ao redor por tecido e o único que encontrei foi das roupas de uma pessoa da minha tripulação.

O corpo estava boiando sem vida no meio do lago de suco gástrico de monstro. Usei um pedaço de madeira do navio que estava do lado para puxá-lo. Peguei o pano e o rasguei em dois grandes pedaços, amarrando um com força na perna um pouco antes do machucado. Depois, coloquei um toco de madeira na boca para morder e comecei a puxar o pedaço de pau da minha perna.

A dor foi tão intensa que cheguei a sentir um dente trincar na madeira que eu estava mordendo. Consegui tirar e rapidamente amarrei o outro pedaço de tecido em cima do machucado. Meu sangue jorrou aos montes mas depois de um tempo deitado ele cessou.

Eu não sabia o que fazer, afinal as chances de ser resgatado eram praticamente nulas. Passei pelo o que eu julguei serem dias procurando por outros sobreviventes, porém sem sucesso. Haviam corpos boiando mas não eram todos, então imaginei que talvez esse grande túnel fosse bem maior e eles poderiam estar mais pra frente.

Cogitei improvisar uma jangada mas a perna não me permitia me movimentar muito. Eu tinha que conviver com a fome e a dor, fora estar a beira da loucura. Quando fiquei sem opções de alimentação comecei a comer as paredes, afinal era tudo carne de um peixe gigante. Como não tinha fogo precisei vencer o nojo e comer cru.

Eu passava a maior parte do tempo no escuro para poupar a bateria da lanterna. Eu estava a beira de um colapso nervoso, orando o dia inteiro para que meus companheiros estivessem juntos e vivos, todos montando uma embarcação improvisada para sairmos dali.

A dor era intensa na minha perna. Comecei a pensar na minha família que devia estar me esperando preocupada. Eu já tinha me atrasado assim antes por problemas no navio, mas creio que nunca por tanto tempo.

Eu não tinha noção de dia ou noite ali dentro mas pra mim já tinha se passado meses. Eu cheguei até a conversar com a criatura para passar o tempo, mesmo que ela não me enviasse uma resposta ou sequer estivesse ouvindo.

Imaginei a sensação de ser aquele monstro marinho. Talvez ele estivesse sentindo dor da carne que eu estava diariamente retirando dele. Ele esperava que eu fosse ser sua comida porém ele que estava sendo a minha. Eu me senti bem pensando isso, era a minha vingança por aquele peixe ter acabado com a minha vida.

Achei que eu fosse morrer sem entender a sensação de ser comido por dentro, até que olhei para o meu machucado. Minha carne estava escurecida, com pedaços podres se soltando. Da abertura, um líquido amarelado escorria aos montes e larvas dançavam se regozijando do belo banquete.

Puxei desesperadamente cada uma daquelas criaturas repugnantes e as coloquei na boca, para comê-las assim como elas estavam fazendo comigo. O estalo delas nos meus dentes me satisfazia. Estávamos todos presos em um ciclo de vingança ali dentro, mas aquela era uma guerra que eu sabia que iria perder.

O tempo todo eu sempre fui a comida.

Contos de um dia de chuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora