Eu estava desolada. As duas últimas semanas têm sido infernais desde o desaparecimento do meu filho. Ele me pediu tão inocentemente para sair que até agora não acredito que aquela fora a última vez que eu veria seu rosto. Não, aquela não pode ser a última lembrança que vou ter dele.
A polícia não parece estar fazendo nada relevante sobre, afinal da última vez que eu liguei lá meu marido me interrompeu e disse que iria falar com o policial ele mesmo. Eu não tenho nenhuma desconfiança nele, pelo contrário, mas e se ele não tiver dado tantos detalhes assim? Eles sequer vieram buscar por evidências na minha casa, apenas conversaram comigo e disseram que tudo iria ficar bem.
Fazia um ano que eu estava morando com meu atual marido. Ele e seu filho vieram morar comigo e eu fiquei muito feliz do meu pequeno ter companhia de alguém mais próximo de sua idade. Porém o garoto não parecia gostar muito do meu menino.
Todas as vezes que eu falava dele, meu enteado ficava brabo e se levantava. Não vi eles sequer interagindo direito quando deixei os dois brincando lá fora certa vez. Meu marido também não parecia gostar muito dele, afinal não dava o mesmo afeto que dava para o seu de sangue.
Porém não tenho o que reclamar, ele sempre foi muito respeitoso com meu filho e comigo. Sempre fazia questão de guardar um lugar para ele na mesa próximo de si, e de servir sua comida como ato de carinho. Durante esses últimos dias, esse homem tem sido meu total apoio. Ele olha com ternura nos olhos e diz que vai ficar tudo bem.
Mas eu não consigo ficar bem. Quando a mãe do coleguinha ligou pedindo autorização para meu filho ir dormir com seu amigo na casa deles, eu devia ter dito não. Como eu nem sequer peguei o endereço da casa para caso algo acontecesse? Eu sou uma péssima mãe e esse pensamento não sai da minha cabeça.
O que me deixa mais apreensiva é que quando retornei a ligação no outro dia, ninguém atendeu. O número não existia, mas eu tenho certeza que disquei a mesma sequência que estava registrada no identificador de chamadas. Passei o número para a polícia na esperança de que eles pudessem rastrear ou de alguma forma ter algum registro, porém sem sucesso até agora.
O que me irrita é que tudo estava indo tão bem, mesmo com tantos comentários contra vindo de nossas famílias. Eu tenho certeza que minha sogra me odeia, e preferia mil vezes que seu filho estivesse casado com alguém que não fosse eu. Talvez ela tenha razão, eu sou uma pessoa horrível.
Até minha minha mãe sempre foi contra, dizendo que a intenção era boa porém não tinha como dar certo. Talvez ela estivesse pressentindo que ele pudesse fazer algo contra meu filho? Não, não posso duvidar do amor e da lealdade dele para comigo.
Durante todos esses dias ele têm me acordado dizendo que vai ficar tudo bem, que a ajuda virá. Eu tenho esperado com tanta fé que já nem sei mais o que faço durante o dia além de olhar pela janela na esperança de ver meu garoto abrindo a porta de casa dizendo que só tinha se perdido.
Como se não bastasse a aflição do desaparecimento, a casa está infestada de ratos. Eu os escuto andando por cima do forro de madeira, guinchando e arrastando suas unhas como se estivessem regozijando por algo.
Minha vontade era de subir no sótão e atear fogo para que todos morressem, porém isso destruiria a casa toda e a escadaria que cai da abertura do teto para acessar aquela área está velha e insegura. Meu marido tentou me confortar comprando ratoeiras e veneno para jogar pela casa, porém nunca consigo encontrar sequer um deles morto no chão no outro dia.
Eles são espertos e estão brincando comigo, eu tenho certeza. Uma noite eu resolvi ir até a cozinha para beber água e acabei pisando em uma das ratoeiras. Ninguém da casa jamais teria colocado uma delas bem no meio do corredor como aquela estava. Gritei de dor e de susto.
Quando me dei por conta, um dos roedores estava lá parado me encarando. Seus olhos eram vermelhos e brilhavam no escuro, como se fossem faróis acesos. Meu pé estava lavado de sangue e eu senti que uma parte do meu dedo estava dilacerada pelo aço.
Eu nunca imaginei que aquela armadilha fosse tão perigosa assim. Me agachei com raiva e cheguei a quebrar a ratoeira no processo de retirá-la do meu pé. Olhei para o canto da parede e o rato estava lá, me olhando, quase sorrindo de deboche.
Manquei até um pequeno armário de vassouras que havia do lado da cozinha, peguei uma e comecei a correr tropegamente atrás da criatura asquerosa. Ele me olhava periodicamente como se estivesse me esperando para alcançá-lo, apenas para correr mais ainda e me deixar pra trás tentando ir mais rápido, toda torta.
O ódio me consumiu e eu só iria parar quando o visse morto. Ele então parou exatamente debaixo da portinhola que levava ao sótão, levantando a cabeça para o teto como se a observasse.
Bati a vassoura com tanta força que cheguei a quebrar o cabo. O corpo molenga da praga espatifou no chão, espirrando seu sangue sujo. Resolvi descer a escada que leva para cima e subi, mesmo arriscando cair de lá. Eu estava decidida a acabar de uma vez por todas com a infestação indesejada.
Quando subi e olhei ao redor, uma legião de pequenos olhos vermelhos estava me observando. Eram quase como clones daquele que eu havia matado, todos me olhando, me julgando. No chão do sótão estava o corpo do meu filho, todo roído e faltando pedaços.
Eu não consegui me conter e comecei a gritar. Os ratos nem se mexeram, apenas ficaram fixos em mim. Na minha cabeça eu conseguia ouvi-los falando que eu era uma péssima mãe. Eu caminhei até o corpo dilacerado e o abracei.
Sua órbita direita estava vazia e seu olho esquerdo estava aberto, fitando o teto de madeira velha. Suas roupas estavam gastas e esburacadas. Seu dedos foram roídos até que os ossos estivessem de fora. No cabelo faltavam pedaços, como se alguém os tivessem arrancado com as próprias mãos.
Foi então que das minhas costas eu vi uma sombra se projetando no teto com a luz que vinha do corredor. Meu marido subiu e perguntou o que eu estava fazendo. Eu apontei o cabo de vassoura quebrado em sua direção e comecei a o acusar. Não tinha outra explicação: ele matou meu filho e o escondeu de mim dentro de nossa própria casa.
Ele ternamente caminhou até mim, tirou a arma improvisada da minha mão e, me olhando no fundo dos olhos, disse:
- Calma, vai ficar tudo bem. Já liguei e a ajuda está vindo. Você nunca teve um filho, não tem nada aqui neste sótão além de nós dois.
Suas palavras me atingiram como um tiro. Levei a mão aos olhos, tampando-os por alguns segundos. Quando olhei ao redor, só estava eu, meu marido e um cabo de vassoura quebrado em sua mão, todos juntos em um sótão vazio e escuro.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Contos de um dia de chuva
Misteri / Thriller[PT-BR] Contos curtos de terror e suspense. Postarei com alguma frequência mas principalmente quando chover, que é quando minhas ideias afloram mais. Durante esse mês de outubro terá um conto por dia com os temas sugeridos pelo Inktober - não sou u...