Fiapos

17 2 0
                                    

A ligação chegou no meio da madrugada. Eu estava dormindo tão profundamente que não consegui fazer nada além de recusar e deitar-me novamente, porém apenas pra ter que repetir o processo por mais três vezes até despertar completamente e olhar quem de fato estava do outro lado da linha.

Era uma amiga de infância que mantenho contato até hoje. Somos muitos próximas, mesmo ela vivendo praticamente do outro lado do país. Compartilhamos todos os aspectos de nossas vidas uma com a outra, então neste momento não seria diferente.

Ela me contou que seu pai morreu tragicamente em um acidente de carro, e que precisava muito da minha presença nesse momento. A primeira coisa que me veio à cabeça foi que fazia muito tempo que eu gostaria de passear na casa dela, e por mais que a situação não fosse nada agradável, talvez pudéssemos passar algum tempo juntas e aproveitar alguma coisa.

Conversei com meus pais sobre o ocorrido. Eles ficaram chocados e concordaram que eu devia ir, mesmo que o preço de uma passagem de avião de última hora fosse muito caro. Então logo cedo abri o site da companhia aérea.

Descobri que o único voo disponível iria sair de noite da minha cidade e chegar na madrugada do próximo dia no destino. Pensei que talvez fosse ser tarde demais e liguei pra minha amiga para contar, mas ela felizmente me disse que todo o processo de liberação do corpo ainda iria demorar e provavelmente o velório seria exatamente na manhã do dia de minha chegada.

Preparei minhas malas e passei praticamente o dia todo falando com minha amiga pela internet. Ela estava muito abalada com tudo, e no meio disso eu descobri que sou péssima em consolar alguém. Minha mãe me disse que iria se encarregar de avisar a escola, já que duas semanas de faltas faria um estrago.

Acabei lidando com essa viagem como umas férias compulsórias, porém com um humor pior do que eu imaginava. Fiquei pensando que talvez a pior parte do luto fosse acontecer apenas pelos primeiros dias, e que talvez tivéssemos tempo de ainda ter algum momento divertido. Só estava triste de ter que sair sem poder retocar a raiz do cabelo novamente.

Eu tinha pintado de vermelho a muito tempo, e nesse momento estava quase completamente alaranjado. Fiquei por alguns minutos me encarando e acabei concluindo que minha aparência estava boa o bastante para um enterro de qualquer forma.

Faltando uma hora para a viagem minha mãe me chamou para irmos, afinal era melhor chegar adiantado no aeroporto já que perder esse voo estava fora de cogitação. Só não contávamos que no meio do caminho fosse ter um acidente e uma via bloqueada.

Fiquei estressada com tudo isso e me perguntei porque diabos alguém tinha que ser um péssimo motorista justo no nosso caminho. Acabei ficando com remorso quando finalmente conseguimos passar pela via depois de ter um lado da pista liberado.

Do ponto de vista que eu estava, no banco do passageiro, pude ver a cena: uma moto completamente retorcida e presa na frente de um carro; um lençol cobrindo porcamente um corpo no asfalto; pessoas chorando no canto da via.

Fiquei imaginando que aquela era a cena que minha amiga talvez tivesse passando no momento. Um acidente fatal. O pai de alguém estirado no chão. Olhei na direção de uma menina que estava quieta agarrada nas pernas de uma mulher.

Pressupus que a mulher fosse sua mãe, e pelo desespero em seu choro imaginei que fosse parente da pessoa coberta pelo lençol. A menina estava completamente estática, possivelmente sem entender nada, apenas abraçando sua boneca de pano.

Me coloquei no lugar dela. Eu provavelmente seria aquela garotinha, totalmente envolvida no que estava acontecendo, mas sem entender nada e sem demonstrar nenhum sentimento aparente.

O restante do caminho foi completamente consumido pelo silêncio e pela velocidade em que minha mãe teve que dirigir. Chegamos no aeroporto faltando apenas poucos minutos para o embarque. Meu nome era o último que faltava entrar no avião.

Nos despedimos rapidamente e entrei na aeronave como uma bala. Estava arfando e completamente perdida sobre qual era meu assento. A aeromoça me ajudou a encontrar meu lugar e guardar minhas malas. O avião tinha duas fileiras de assentos, cada uma com dois lugares em cada. O meu era o do lado do corredor, logo à esquerda de um senhor de idade.

Ele estava com o rosto de lado, olhando para a janela. Eu o cumprimentei mas fui completamente ignorada, então apenas me sentei, sem conseguir ver muito dele. Não era como se eu precisasse me tornar amiga da pessoa que estava do meu lado.

O voo estava praticamente vazio. Mais da metade dos assentos estava vazio, e percebi que não tinha praticamente ninguém sentado em dupla nas fileiras.

Comecei a imaginar que talvez eu pudesse pedir pra trocar de lugar para ficar sozinha em uma fileira, porém logo desisti da ideia, afinal me atrasar pro embarque já era incomodar demais e eu estava completamente com vergonha de pedir algo pra aeromoça.

Os recados padrões de um voo foram dados, o avião decolou e em algumas horas eu estaria na cidade de minha amiga, pronta pra matar a saudade e ter que chorar um pouco.

Como era um voo noturno, as luzes principais se apagaram, mantendo apenas alguns poucos pontos iluminando. As pessoas já começaram a inclinar seus assentos para dormir um pouco. Estava muito frio e eu estava pilhada demais pra conseguir dormir. Olhei pro lado imaginando que o senhor faria o mesmo que a maioria, porém me enganei.

Ele se manteve completamente estático durante esse tempo todo. Estava olhando para a janela, porém ela estava fechada, então ele não tinha absolutamente nada pra ver ali. Fiquei um pouco preocupada porém eu não conseguia ver o rosto dele sem precisar me inclinar um pouco pra frente, e eu definitivamente não queria chamar a atenção dele.

Resolvi inclinar meu assento e tentar dormir, pra evitar descobrir quaisquer que fossem os motivos daquele homem estar agindo estranho daquele jeito. Mesmo com a cabeça fervilhando de ideias, acabei cochilando.

Acordei com um súbito arrepio e com algo tocando meu rosto - era um fiapo vermelho. Voltei meu assento lentamente e olhei assustada ao redor.

Todos os passageiros estavam dormindo, e o senhor que estava do meu lado continuava estático na mesma posição. Olhei para o meu colo e para o chão da minha fileira e havia tufos de linhas e fios espalhados por todo o lugar. As linhas eram vermelhas e alaranjadas.

Comecei a sentir uma comichão no meu estômago, seguida rapidamente por uma falta de ar. Coloquei a mão na cabeça pra tentar me manter focada e olhei em direção ao corredor. Tentei gritar pela aeromoça.

Minha voz simplesmente não saiu, e no lugar das palavras houve apenas um sopro ríspido e um barulho gutural. Levei minhas mãos no pescoço desesperada.

Eu precisava de ajuda e não tinha ninguém próximo além do homem ao meu lado. Levei uma mão em seu ombro buscando desesperadamente que ele acordasse de seu transe macabro. Foi então que ele se virou.

Seu rosto era pálido. No lugar dos olhos era possível ver apenas órbitas escuras e vazias. De sua boca estava caindo uma boneca de pano, completamente mastigada.

A barriga da boneca estava rasgada. Seu pescoço pendurado por apenas um ínfimo pedaço de pano. Seu enchimento branco de algodão escapando por diversas partes. Seu cabelo era uma mistura de vermelho e laranja, cuidadosamente colocado alternadamente.

A boneca era eu.

Contos de um dia de chuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora