Armadilha

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Eu caminhava com os olhos atentos na presa. Estava muito longe da minha cabana para voltar de mãos vazias, então eu tinha que fazer o possível para capturar aquele animal. Eu caçava sem remorso já que era uma forma de me sustentar, então infelizmente alguém iria sair ferido e potencialmente morto mas eu não imaginei que seria eu.

Um pequeno riacho corria ali, local perfeito para conseguir presas fáceis enquanto bebem água. E lá estava ele, um grande javali. Eu já fazia planos com cada parte daquele animal depois que eu o capturasse. Mirei a arma exatamente na cabeça mas antes que eu tivesse a chance de atirar ele se deslocou, fazendo com que uma árvore ficasse no meio da minha visão dele.

Comecei a dar a volta vagarosamente para ter uma linha de tiro limpa. Caminhei com a arma apontada e os olhos fixos no bicho, até que pisei onde não deveria. O silêncio da floresta foi rompido por um som metálico ardido e meus gritos. Eu pisei em uma armadilha de urso e seus dentes afiados cravaram na minha canela.

Eu podia ver a carne da minha perna rasgada e sangrando. A ferida era tão profunda que parecia que iria decepar meu pé a qualquer momento. Tentei me acalmar e me concentrar na dor mas não conseguia conter meu sofrimento. Aquela peça com toda certeza foi modificada para ter uma borda mais afiada, o objetivo era realmente mutilar o que pisasse ali.

Tentei me soltar mas não havia força que eu fizesse nas presilhas laterais que fosse suficiente para desarmar a armadilha. Percorri os olhos e notei que ela estava presa por uma corrente em torno de uma árvore, metodicamente amarrada de forma que apenas subindo se tinha alcance ao grande cadeado que prendia dois elos formando um laço. Nada tirava da minha cabeça que aquilo era obra de alguém mal intencionado que gostava de curtir o sofrimento alheio.

Eu não tinha nenhuma ferramenta que pudesse me ajudar a escapar dali, tudo o que estava comigo era a arma e um cantil de água. Comecei a gritar por socorro mas a única resposta que eu tive foi os pássaros que voavam assustados com meu barulho. Fiquei ali preso torcendo por socorro por alguns dias. A água do cantil foi suficiente para me manter mas a fome já estava apertando e a minha perna já começou a infeccionar.

Foi quando, no cair da noite, um sombra alta se aproximou de mim. Meus olhos estavam descrentes vendo que alguém que poderia me salvar realmente estava ali. Era de fato o meu salvador, porém não da forma que eu imaginei.

Ele se aproximou e eu pude ver que vestia uma enorme capa feita de da pele de um urso. Os braços do animal morto pendiam sobre o ombro do homem e sua boca, que teve sua parte inferior cortada, encaixava perfeitamente na cabeça dele como um capuz. Além da pele ele usava apenas uma calça maltrapilha, amarrada em vários pontos com outros tecidos provavelmente para tapar buracos e rasgos. Em seu torso nu era possível ver cicatrizes gigantes que pareciam feitas por garras afiadas que cortaram paralelamente seu corpo.

Ele carregava um machado gigante em ambas as mãos. Ao me ver naquela situação ele se aproximou. Pedi chorando para que me salvasse mas tudo o que ele fez foi levar sua mão até uma pequena bolsa presa na cintura e retirar um pedaço de carne crua. Ele me entregou aquilo, pegou o cantil que estava no chão do meu lado, foi até o lago para enchê-lo e o trouxe de volta para mim.

Depois que fez tudo isso ele simplesmente partiu pelo mesmo caminho em que veio. Gritei incessantemente para que ele parasse e me livrasse daquela armadilha mas ele ignorou e continuou sua marcha silenciosa pela floresta. Me vi absolutamente sem opções do que fazer além de comer a carne, ainda ensanguentada, e beber a água.

O pedaço tinha um gosto forte, mas nada que eu pudesse escolher não comer. Devorei tudo e me pus a esperar por um resgate. Fiquei pensativo se por acaso ele foi buscar ajuda ou até mesmo a pessoa que colocou a armadilha para que ela pudesse abri-la. Fiquei mais um par de dias preso antes que o homem estranho viesse novamente.

Ele fez exatamente a mesma coisa do primeiro dia: me deu carne e buscou água. Foi assim durante o que eu contei ser três semanas. Minha perna já fedia, com um sangue escuro e pegajoso minando aos poucos junto com uma secreção esbranquiçada. Eu tinha que tomar alguma ação, afinal ele estava praticamente me criando como um animal engaiolado.

Eu sabia o que tinha que fazer, mas só não estava com a coragem para fazê-lo. Adiei pelo menos duas das vindas do homem até de fato criar coragem. Quando ele voltou pela terceira vez eu o encarei de frente e apontei para o machado. Ele me olhou com uma feição triste e eu apontei para minha perna.

Ele entendeu o recado. Me deitei pra trás e desviei o olhar. Vi pela sua sombra que ele já estava do meu lado com os braços levantados. Seu machado desceu fazendo um corte limpo, quase cirúrgico. Eu estava com dor há tantos dias que a que eu senti no momento já não fazia diferença. Senti minha perna solta da armadilha.

O sangue escorreu aos montes e minha visão ficou turva. Em lapsos temporários de consciência eu vi que o grande caçador me carregou em seu ombro até um acampamento. Eu não me lembro de como ele era mas parecia apenas um grande buraco feito no chão, com adornos feitos de ossos por todo lado. Ele colocou o machado em uma fogueira acesa e, quando estava quente o suficiente, o encostou na minha perna para cauterizar a ferida.

Aquilo foi suficiente para me desmaiar de vez. Quando acordei, estava em minha cabana deitado. Imaginei que talvez tudo pudesse ter sido fruto da minha imaginação mas meu pé realmente não estava lá. Improvisei uma peça de madeira amarrada na canela como um pirata e continuei minha vida na cabana.

Era próximo de um pequeno vilarejo e eu passei a viver de caridade dos que habitavam ali. Nas histórias dos locais eu me tornei o homem inválido que enlouqueceu em uma de suas caçadas e cortou sua própria perna, porém eu sabia que não fiz isso, foi aquele homem estranho.

Porém ninguém nunca mais o encontrou e eu continuei a minha vida por muitos anos, até que em uma noite eu fui acordado com uma batida nervosa na porta. Quando me levantei a entrada estava quebrada no chão e o homem da pele de urso estava na minha frente com seu machado afiado.

Tentei me aproximar dele para perguntar quem ele era ou o que ele estava fazendo aqui, mas como resposta recebi um soco que me fez cair no chão tonto. Ele me puxou até ele pela perna, apoiou seu corpo pesado sobre o meu e desferiu um golpe limpo e preciso contra o meu braço, arrancando-o em um só movimento.

Meu sangue escorria aos montes, como da primeira vez na perna, mas dessa vez ele não veio com um machado quente para estancar. Ele me colocou sobre a mesa, partindo mais e mais partes do meu corpo, até que fiquei apenas uma cabeça presa a um torso desmembrado.

Com uma faca pequena ele retirou minha carne dos ossos, separando também a pele e os nervos. Quando terminou, deixou o que não precisava no chão e colocou o restante em um grande saco que carregava nas costas, separando um pouco pra colocar na pequena bolsa presa em sua cintura. Foi então que eu entendi tudo.

Era a minha vez de ser alimento de alguém preso em sua armadilha.

Contos de um dia de chuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora