Dentes

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E cá estava eu no tão falado turno da noite. Na verdade esse não era meu horário comum de trabalho, porém recentemente precisei tirar uma folga e meu amigo me cobriu, então agora chegou minha vez de ficar no lugar dele pra que ele pudesse ter uma folguinha.

Eu trabalho em uma lanchonete que atende até de madrugada. Sabe como é, fast food e jovens saindo de alguma festa é uma combinação perfeita pra se ganhar dinheiro. Como sou uma pessoa medrosa e nunca quis voltar pra casa tarde e sozinha, preferi me candidatar para a vaga diurna, enquanto meu amigo descoladinho e gótico preferiu ficar no turno da noite.

Até que eu gostaria de trabalhar junto com ele, mas sem chance de eu mudar meu horário. Mas pelo menos conseguimos interagir um pouco, já que quando ele chega eu estou de saída, então sempre fico um tempinho a mais para colocar a conversa em dia.

Numa dessas eu comentei que precisaria fazer uma cirurgia no dentista para tirar meus sisos, o que ia me deixar de castigo em casa por uns dias. Eu estava preparada para pedir uma folga para o meu patrão, que ele provavelmente iria descontar do meu salário porque assim era aquele lugar. Foi então que meu amigo sugeriu me cobrir durante esse período.

Conversamos com o gerente e ele autorizou. Ficou combinado que eu ficaria alguns dias fora, meu amigo trabalharia o dia todo durante esse período e quando eu retornasse, faria o turno completo enquanto ele ficaria de folga. Não sei se a lei permitia uma pessoa trabalhar por tanto tempo, mas não estava interessada também afinal era melhor isso do que perder dinheiro.

E foi como as coisas aconteceram. E lá estava eu em pé no balcão, com a boca ainda um pouco inchada, esperando alguma alma aparecer e fazer algum pedido. A lanchonete tinha algumas mesas e cadeiras para as pessoas comerem ali, um balcão de madeira que separava a área de atendimento do restante do lugar e as paredes do lado da entrada eram na verdade grandes janelas que permitiam observar todo o movimento do lado de fora.

O estabelecimento não ficava em uma local tão movimentado assim, porém não era como se algum lugar estivesse movimentado a essa hora. Nas mesas estavam alguns poucos clientes possivelmente bêbados e de funcionários havia apenas eu como atendente e o rapaz da cozinha, que ficava enfurnado em um canto mais ao fundo jogando no celular enquanto esperava por algum pedido.

Se aproximando da meia noite os clientes pararam de chegar, deixando apenas os que estavam lá terminando sua conversa sob os pratos já vazios. Foi quando eu notei que uma figura peculiar se aproximou da janela.

Parecia ser uma senhora de idade. Ela vestia um casaco longo já surrado pelo uso, tinha o cabelo todo branco e desgrenhado e usava um par de tênis furados que parecia ter sido remendado com tecidos diferentes do original. Ela percorreu os olhos por todas as mesas, se virou de costas e se sentou do lado de fora.

A princípio eu não me preocupei, afinal ela provavelmente era apenas uma mendiga e eu não estava sozinha. Porém depois de alguns minutos os clientes começaram a ir embora, mesa a mesa, como se alguém os tivesse convidado a sair. A figura estranha então se levantou e entrou na lanchonete.

Ela olhava fixamente para o chão e foi direto se sentar em uma das mesas. Eu não sabia como agir pois não somos um restaurante em que o garçom vai até a mesa colher os pedidos, somos uma lanchonete em que as pessoas fazem o pedido no balcão e depois retiram quando suas senhas são chamadas.

Fiquei alguns minutos encarando e percebi que ela não iria fazer ação alguma além de fitar a mesa. Resolvi tomar a iniciativa de sair de trás do balcão e perguntar se ela precisava de alguma coisa. Fui me aproximando lentamente, afinal eu estava com um pouco de medo, e quando cheguei próximo comecei a ouvir sua respiração pesada.

Perguntei se ela estava bem e se precisava de alguma coisa. Sua respiração ruidosa cessou. Ela se virou para mim, olhou nos meus olhos e abriu a boca. Ela estava com os olhos fixos em mim quando começou a ranger os dentes. Sua dentição amarelada e falha se esfregava freneticamente, produzindo um som amargurante que parecia ecoar dentro da minha cabeça. Fiquei alguns minutos observando a cena como se estivesse em uma espécie de transe que me impedia de mover. Era como se meus olhos começassem a enxergar cada vez mais fundo na boca escura e o som ficasse cada vez mais alto. Foi quando tive um breve momento de consciência e, no susto do momento, corri para a cozinha.

Cheguei lá aos berros, trombando em todos os utensílios possíveis. O rapaz que trabalhava comigo veio ao meu socorro assustado e perguntou o que estava acontecendo. Contei tudo o que tinha acontecido e só então me dei por conta que eu me assustei por uma coisa muito boba. Parei pra pensar melhor e aquela senhora poderia estar apenas brincando comigo, ou que até mesmo tinha algum problema.

Voltei até o saguão acompanhada do meu colega de trabalho e para minha surpresa estava completamente vazio, sem ninguém sentado nas mesas. Nos entreolhamos e apenas aceitei que aquela criatura estranha podia ser fruto da minha imaginação.

Depois de algumas horas meu expediente chegou ao fim e eu pude ir pra casa. Alguns outros clientes passaram por lá depois do incidente, o que me acalmou. Cheguei em casa já de madrugada. Eu morava com a minha mãe e ela já estava dormindo, então apenas fiz os preparativos padrões de qualquer um e fui dormir.

Depois de algumas horas eu acordei no susto. Eu não me lembro do que exatamente estava sonhando mas no meio do caminho comecei a ouvir o som dos dentes da velha rangendo. Abri os olhos e comecei a respirar fundo pra me acalmar, porém eu ainda estava ouvindo o som.

Comecei a me concentrar nele e percebi que na verdade estava vindo da minha casa. Será que aquela velha estava ali? Tentei não imaginar na possibilidade dela ter me seguido até em casa para fazer o que quer que seja o que estava fazendo. Me levantei da cama e abri a porta do quarto devagar.

Minha porta era a última do corredor, que levava para a entrada da casa e a escadaria para o andar de cima. Havia alguém sentado no pé da escada mas eu não conseguia enxergar naquele escuro. Resolvi seguir o som pelo corredor, até que pisei em algo que cravou no meu pé.

Era um dente no chão, seguido por um caminho de vários outros que levavam até a sombra no pé da escada. Percorri o caminho de dentes e sangue, e quando cheguei na metade do corredor perguntei quem estava ali. A sombra se levantou e olhou na minha direção, bem a tempo de eu alcançar o interruptor e acender a luz.

Era minha mãe em pé, com a boca aberta e as gengivas já vazias se esfregando entre si, arrancando sangue e pedaços de carne. Corri até ela, segurei em seus ombros e a chacoalhei em uma tentativa pífia de acordá-la daquele transe ou seja lá o que aquilo fosse. Comecei a gritar de desespero perguntando o que estava acontecendo.

Ela não parou e nem me respondeu. Continuou com o mesmo movimento agressivo com a boca, se sentou novamente e eu me afastei. Nada daquilo fazia o mínimo do sentido, e quando me dei por conta eu já estava coberta do sangue dela. Corri até o quarto para pegar meu celular e ligar para a ambulância quando senti uma fisgada na boca.

Senti os pontos ainda recentes da minha remoção de sisos se romperem, seguido por uma dor aguda na mandíbula como se alguma coisa a estivesse quebrando e puxando. Corri até o banheiro e abri minha boca para olhar no espelho.

Eu estava sangrando muito e havia dentes nascidos em lugares que eles não deveriam nascer.

Contos de um dia de chuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora