Tempestade

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A visibilidade estava péssima, como já era de se esperar com toda aquela chuva, mas eu tinha que continuar a viagem. Eu precisava ir para o único lugar do mundo que podia me livrar de todos os pensamentos e ter paz.

Eu e minha esposa brigávamos bastante e sempre nos entendemos depois, mas parece que com a vinda dos primeiros cabelos brancos a paciência resolveu ir embora. Ela sabia que eu tinha ansiedade e tomava remédios para isso, então era maldade de sua parte fazer tanta pressão em cima de mim.

Mas não posso julgá-la já que era nosso aniversário de casamento e eu tinha prometido que sairíamos para jantar. Menti para ela dizendo que estava tendo uma crise mas ninguém melhor do que sua companheira para saber quando você está mentindo. O fato é que tudo começou com uma indisposição e escalou para um ataque de nervos com toda aquela discussão.

Já não aguentamos mais um ao outro e essa é a verdade que tentamos desesperadamente esconder. Ela me apoiou durante todos os momentos difíceis de minha vida, e eu não fui diferente com ela, mas parece que já não falamos a mesma língua.

Ela se dedica aos nossos filhos sempre os colocando na frente de si própria. Eu não concordo em nada com isso, principalmente com a caçula não ligando nem pra desejar um feliz aniversário ou o mais velho vindo em casa vender móveis para comprar drogas.

Eu tentei inúmeras vezes tirar ele desse mundo maldito, mas o lado ruim sempre fala mais alto quando existe dinheiro envolvido. Trabalhar comigo na marcenaria era algo pacato demais para alguém que vivia pilhado e nas alturas. O dinheiro fácil das ruas era tentador, então pra que se esforçar?

Sua mãe me pediu para desembolsar uma quantia absurda para interná-lo em um hospital que prometia a cura verdadeira para o vício. Era um dinheiro que não conseguiríamos repor nem que tivéssemos mais uma vida inteira de trabalho, mas ela insistia no sacrifício de vender a casa e eu, na de que as escolhas vem com consequências.

Talvez eu realmente fosse um ser humano desprezível como ela dizia nos momentos de tensão. Mas onde eu errei a ponto da mais nova se casar, ir embora e sequer se lembrar que os pais ainda existem? O que mais me dói é que ela sempre foi minha favorita e eu me arrependo de tê-la tratado tão melhor que os outros.

O do meio era o único que se importava. Vinha a nossa casa sempre para trazer algum prato que preparou e passar um tempo conosco. Eu sempre o tratei muito mal pois queria que ele estudasse medicina ou direito enquanto ele queria gastronomia. Por mais que ele levasse jeito na cozinha eu sempre boicotei e coloquei pressão para que ele fizesse o que eu queria.

Percebi que ele não me ouviria no momento que saiu de casa para estudar em outra cidade dizendo que estava indo ser advogado. Voltou formado em culinária e hoje ganha muito bem trabalhando em um restaurante famoso da cidade.

Eu tinha sido muito ruim com meus filhos durante a minha vida, e me arrependo disso. Eu usava minha ansiedade como desculpa porque nem eu entendia o que sentia até realmente buscar ajuda. Pra mim ir nesse tipo de profissional era sinal de loucura, mas eu estava completamente errado.

Descobri na terapia que meus problemas são todos causados por traumas passados, e que meus pais tiveram uma parcela muito grande de culpa na minha infância. Eu realmente não quero que no futuro eu seja o causador dos problemas que meus filhos buscarão ajuda.

Por isso eu aprendi uma forma de escapar dos problemas antes que eles me consumam: viajar. Comprei uma chácara próxima a cidade e sempre vou sozinho pra lá quando tenho uma crise. Foi o que fiz depois dessa briga de hoje, peguei o carro e saí no meio da noite.

A chuva me acompanhou junto com as luzes do celular notificando ligações perdidas. O caminho pra lá era sinuoso e escuro, passando por uma reserva florestal que cobria ambos os lados da estrada. A iluminação era precária, sendo formada basicamente por placas luminescentes e pequenas peças de plástico que acompanhavam as linhas da borda da pista, que brilhavam em amarelo ao receber luz do farol.

Não havia ninguém vindo na pista contrária, afinal era pleno dia de semana e as pessoas normais precisam acordar cedo no outro dia para trabalhar. Eu também tinha, mas a marcenaria era minha então era eu mesmo quem fazia meu horário. Coloquei uma música bem alta e segui a toda velocidade quando a pista se tornou uma reta comprida.

Eu estava correndo muito mais do que o permitido ali e tanto a chuva quando a falta de iluminação tornavam o trajeto perigoso demais, mas eu não ligava para o risco de um acidente fatal, afinal aquela era a solução definitiva para os meus problemas. Foi então que a morte decidiu brincar comigo.

O farol iluminou algo no meio da estrada. Era uma mulher alta vestindo uma roupa branca comprida. Por mais que eu tentasse frear as rodas aquaplanaram fazendo o carro rodar na pista depois de atingir a garota em cheio. Eu ouvi os sons de seu corpo batendo no teto do carro e depois caindo sobre o asfalto frio e molhado.

Desci do veículo. Eu estava tonto e minha visão parecia turva debaixo daquela tempestade toda. O corpo estava lá, estatelado no chão, aguardando socorro. Me aproximei e agachei ao seu lado. Suas pernas estavam tortas, com os joelhos virados para frente, e sua pele estava toda ralada. Ela respirava com dificuldade puxando o ar em um ritmo acelerado e curto, como se a vida estivesse esvaindo de seu corpo.

Peguei meu celular e liguei para a ambulância. Minhas lágrimas escorriam como a chuva. Uma voz suave me atendeu dizendo que ia ficar tudo bem e já estava enviando uma ambulância para o local. Me passou todas as precauções e procedimentos padrões que eu já sabia.

Me sentei do lado da atropelada. Minhas roupas encharcadas pesavam tanto quanto as angústias que eu levava comigo naquela viagem. No acostamento estava uma bicicleta velha e torta, com um pneu estourado e os aros arrebitados. Eu sequer tinha visto que aquela mulher estava de bicicleta, e o que diabos estava fazendo ali naquela hora?

No chão se espalhou um saco com algumas frutas e verduras. Tudo rolava pelo asfalto molhado e sujo. Ela devia ser uma dona de casa levando comida para sua família, mas porque justo no momento que eu estava passando? Porque eu tinha que estar correndo tanto naquele carro? Porque eu desviei o olhar para trocar de música?

Ela estendeu a mão para mim, se esforçando com um último sopro de vida que restava em seu corpo. Fui até ela e apoiei sua cabeça em meu colo, segurando suas mãos frias nas minhas.

- Você me perdoa? - perguntei chorando.

- Eu te perdoo - ela respondeu ternamente. Você precisa superar, já faz 20 anos desde o acidente.

Contos de um dia de chuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora