*** capítulo sem correção ***
Thales
Quando algo se quebra dentro de alguém, há um evento externo que faz com que as pessoas que a conhecem bem perceba, algo muito sutil, discreto, que só aqueles que se dispõem a chegar muito perto são capazes de ver.
Ayla viu.
Mesmo que eu tenha me escondido, que eu tenha tentado mantê-la longe, não foi o suficiente, bastou um olhar e sinto como se ela estivesse me vendo por dentro.
Nos últimos dias tenho usado toda a minha energia para me manter longe dela, é exaustivo e me deixa irritado na maior parte do tempo, mas não quero que ela se aproxime, não quero que ela me toque e muito menos que olhe para mim, não quero que ela me faça falar porque tenho medo de que se eu começar não vá mais parar e ela não vai suportar toda a sujeira que vai sair da minha boca.
Por isso que eu evito olhar para ela, é a forma mais segura que eu encontrei de mantê-la longe de tudo o que minha vida se tornou.
Uma droga de uma imensa sujeira.
Uma imundície sem fim.
O limbo onde não a quero por perto.
Chego na rua onde moramos, estou cansado e faminto, algo que já é tão natural que nem ligo. Meus olhos passam rapidamente pela casa dela, sei que Ayla já chegou, eu a vi passar por mim a meia hora atrás e meu peito doeu ao vê-la caminhar de cabeça baixa, tão sozinha. As meninas não gostam muito dela, algumas fazem comentários maldosos por ela gostar de ficar com meninos ao invés de meninas e por causa das roupas que ela gosta de usar, tão diferente dessas curtas e decotadas que mostram mais do que deveriam.
Mas e dai? É isso que faz ela ser especial, Ayla é única, com seus cachos longos, suas camisetas grandes e suas calças masculinas, ela é linda com sua pele escura e seus olhos iluminados, com seu sorriso delicado e sua voz que acalmam meu coração e eu gosto dela assim.
Obrigo meus pés a caminhar e abaixo minha cabeça concentrando-me no chão para não olhar na direção da sua casa, não quero vê-la, principalmente na sua casa, o único lugar no mundo onde me sinto em paz.
Atravesso a rua e meu estomago começa a ficar doente apenas por saber que mais alguns passos e estarei na minha casa, a minha versão particular de inferno. Minha sujeira pessoal.
Assim que coloco os pés no quintal sinto meus joelhos fraquejarem, a mochila pesar em minhas costas, a respiração falhar e meus olhos arderem com a necessidade de chorar, mas eu resisto, não importa o quanto tudo esteja ruim, não importa o quanto aquele maldito possa tirar de mim, eu nunca vou dar a ele o que ele mais deseja, mesmo que isso torne meus dias um verdadeiro inferno, ele nunca terá o prazer de me ver chorar.
Empurro a porta da cozinha e passo por ela em silêncio, o cheiro de comida queimada faz meu estomago embrulhar e a fome passar, odeio frango e nos últimos dias é tudo o que temos para comer, Sandro faz de propósito eu sei e sinceramente não ligo a mínima para suas provocações baixas. Ele me odeia, sou seu brinquedinho particular e já não me importo mais, porém ela é algo que não entendo, por mais que eu tente compreender, não sei o motivo para que a minha mãe faça isso comigo.
Ela sabe, de todas as pessoas do mundo, é ela quem sabe o que o seu filho gosta ou não de comer, ela me alimenta a quase quinze anos e a única coisa que eu não gosto de comer é o maldito frango. Mesmo assim é tudo o que ela faz.
Passo correndo para meu quarto, o enjoo vem se tornando cada dia mais comum, a cada segundo que passo aqui dentro, me sinto mais doente, mais irritado, mais cansado, fraco, triste.
Ouço as vozes deles no quarto, a princípio acho que estão brigando, mas então ouço minha mãe rir de algo e a bile sobe por minha garganta, como ela pode sorrir para ele quando ele me faz sentir tão mal? Passo pelo quarto da minha irmãzinha e dou graças a Deus por ela passar o dia inteiro na escola e não precisar ficar mais que o necessário ao lado desse monstro que infelizmente é o seu pai. No fundo é por ela que suporto tudo, é por ela que continuo aqui, sou seu escudo e a protegerei com minha vida se for necessário.
Olho mais uma vez para porta fechada onde eles estão e tento não pensar no que estão fazendo, minha mãe sabe que está na minha hora de chegar da escola e mesmo assim ela se trancou naquele quarto nojento com seu marido imundo, isso apenas é mais uma prova de que sou praticamente invisível para ela. Um gritinho feminino faz minha pele se arrepiar de pavor, balanço a cabeça afastando esses pensamentos e me apresso a sair, não suportarei olhar para eles, não hoje.
Pego algumas bolachas de água e sal no pote antes de sair sem saber para onde ir, o treino foi adiado por conta da chuva que acabou deixando o campo cheio de lama, os meninos estão quase todos em suas casas, o céu está carregado de nuvens e tenho certeza que vai cair um temporal daqueles, então não tenho mais nada para me distrair, não estou afim de jogar com os moleques da rua, não quero falar com ninguém, na verdade se eu pudesse, nesse momento eu fecharia meus olhos e não os abriria nunca mais. Seria melhor assim, eu pouparia a todos de toda essa merda e meu peito finalmente poderia descansar em paz. Mas infelizmente não tenho essa sorte.
Mastigo a bolacha devagar me arrependendo de não ter pego uma garrafa de agua, me concentro no barulho dela sendo triturada por meus dentes, eles ainda parece estar moles e meu maxilar está dolorido, mas eu não ligo mais, imagino que seja assim que os pugilistas se sentem depois de anos de porrada, eles se acostumam com as dores e elas são tão frequentes que se tornam parte do que eles são. As minhas dores são parte de mim, infelizmente, cada dia elas vem se tornando uma grande parte do todo.
Mastigo as bolachas bem lentamente com medo de que se forçar muito, meus dentes caiam. Ouço um trovão soar ao longe e sei que não vai demorar para começar a chover, mas ainda não tenho a menor vontade de voltar para casa, então continuo andando. Entro em uma rua e sigo até as construções que deveriam ter sido um conjunto habitacional, mas que estão abandonadas e conheço tão bem, vou até as ruinas que tem os nossos nomes marcados no muro inacabado e paro na frente da pichação que enfeita um deles.
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Um Milhão de Promessas - DEGUSTAÇÃO
Lãng mạn*** ATENÇÃO! POSTAGENS INICIADAS NO DIA 21/09/20 *** SINOPSE: As vezes, quando o caos ameaça me enlouquecer, quando minhas pernas ardem pelo esforço exigido por mim, quando a dor já não é mais capaz de silenciar o ódio que pulsa em minhas veias eu...