Capítulo 1 - Dívida Criada

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    Era frio, a noite estava densa e sem estrelas, mas a lua brilhava forte sobre as ruas de Karian, a capital de Karendol. Nessa noite em particular, Doran andava por aquelas ruas atento a tudo que se movia no limiar dos becos escuros, que se limitavam entre os casarões chiques da área. A rua no qual o garoto seguia se estendia até o centro do lado leste da cidade, e acabava na fonte central, que era onde ele queria chegar.

    Doran observava que quanto mais andava na rua em direção à fonte, mais as casas se tornavam extremamente luxuosas e pomposas, diversas vezes teve que se esconder de guardas que rondavam pela área, mas ele estava determinado.

    — Droga, é a quinta vez que esses cabeças de metal aparecem no meu caminho, tomara que aqueles dois idiotas estejam certos sobre a fonte.

    Em um esforço contínuo e sofrido, esquivando-se dos guardas que cada vez eram mais frequentes, Doran finalmente chegou à fonte e se deparou com a bela escultura que a projetava. Era uma bela mulher de rosto fino e elegante feito de mármore. Em uma das mãos levantava um cacho de uvas, enquanto na outra segurava um jarro que derramava continuamente água na fonte. O significado daquela fonte, ressaltava o vinho e as riquezas que ele trazia para Karian, sendo o mesmo, uma das especiarias mais comercializadas na cidade, mas Doran pouco se importava com a importância da fonte ou o que ela representava, o garoto apenas queria fazer seu desejo.

    Jogando na fonte uma das escassas moedas de cobre que detinha, o garoto murmurou seu desejo de olhos cerrados:

    — Sei que é pedir muito, mulher dos cachos de uvas, e... — murmurou o rapaz semicerrando seus olhos e observando o jarro que a mulher segurava em uma das mãos. — Do jarro que derrama água? — disse o jovem franzindo seu cenho ao perceber o quão ridículo era aquilo que estava fazendo. — Já que estou aqui, vou até o fim! Porfavor, mulher da fonte, traga a minha mãe de volta! — vociferou o garoto de dezesseis anos de cabelos negros rebeldes, mas o som de sua voz saiu mais alto do que ele esperava.

    Olhando freneticamente para os lados, o garoto suspirou de alívio ao ver que nenhum guarda notou sua presença ali.

    — Se Jorin e Jakah estiverem certos, é só esperar aqui que o desejo irá se realizar.

    Por um momento, Doran imaginou sua mãe irrompendo de uma das ruas e o chamando. O jovem era bastante maduro para sua idade, e parte disso foi por causa da sua mãe ter lhe abandonado em um orfanato quando ele tinha apenas oito anos, por isso o rapaz teve que se virar sozinho em um mundo que não era muito generoso com crianças órfãs.

    Deleitando-se em pensamentos reconfortantes onde sua mãe o abraçava e falava o quanto sentiu sua falta, Doran se sentou ao pé da fonte e aos poucos adormeceu fitando a rua onde sua mãe provavelmente iria aparecer.

    — Acorda…

    Uma voz soou no ouvido do garoto e a esperança encheu sua mente.

    — Acorda, desgraçado!

    Um chute na barriga de Doran, fez ele acordar com uma dor intensa em seu estômago. Olhando para seus agressores, o jovem reconheceu rapidamente aqueles que eram chamados de Jorin e Jakah. Jorin era baixo em comparação a Doran e muito mais em comparação a seu irmão mais velho, Jakah. Com aspecto sempre malicioso no rosto, Jorin com seus cabelos encaracolados era o mais esperto dos dois irmãos, e era quem sempre maltratava a Doran na época do orfanato.

    — Doran, Doran, Doran, Ô, pequeno Doran.

    Na última parte da fala de seu irmão, Jakah olhou para Jorin que era mais pequeno em relação a Doran, e soltou um pequeno riso que logo foi sufocado pelo olhar sério que seu irmão lhe deu de soslaio.

    — Você achou mesmo que seu pedido iria se realizar, idiota? — disse Jorin lançando um sorriso perturbador a Doran. — Veja Jakah, ele acreditou mesmo.

    — Mesmo, ele acreditou, irmão, Doan idioita, idioita, idioita — Jakah respondeu seu irmão com sua habitual voz enrolada.

    Jakah, com seus quase 1 metro e 90 de altura, tinha cabelos encaracolados assim como o seu irmão, e braços fortes que lhe rendiam uma baita vantagem em brigas de rua, mas o que lhe sobrava em força lhe faltava em cabeça, o garoto era burro de nascença e toda esperteza aparentemente foi para o seu irmão mais novo, que sempre arrumava confusão e se safava usando a força do seu irmão.

    — Eu tinha lá minhas dúvidas, Jorin, mas agora eu tenho certeza, você é um completo idiota, da pior espécie aliás, que é aquele que não aprende com seus erros — falou Doran abrindo um sorriso no rosto e fechando os olhos no processo, se preparando para o que lhe aguardava no futuro. — Vocês não se cansam de tentar me roubar, não é? Isso acontece desde a época do orfanato, eu deveria ter desconfiado que isso era uma armadilha, mas a minha maldita curiosidade foi maior, acho que isso me faz tão idiota quanto você, pequeno Jorin — disse Doran terminando sua fala fazendo um biquinho em sinal de deboche.

    Ouvindo Doran chamá-lo pelo apelido que ele odiava, Jorin olhou para o irmão mais velho e começou a falar com a típica voz mandona dele.

    — Ele está de olhos fechados, Jakah! Pegue ele, não deixe esse desgraçado usar aquela parada dos olhos.

    Com um pulo, Doran se levantou, e de olhos fechados concentrou toda sua atenção em sua audição. O garoto não sabia como fazia aquilo, apenas fazia. O barulho da água do jarro caindo na fonte. O vento uivando sobre a sua cabeça. O ruído dos passos dos dois garotos à sua frente. Com a audição amplificada, Doran ouvia melhor, e sentia verdadeiramente vivo e em sintonia com tudo ao seu redor.

    Dando um passo e meio para a esquerda, o jovem de cabelos negros rebeldes desviou a tempo de evitar um soco que Jakah desferiu contra ele a mando de seu irmão. Foi tudo muito rápido, o que permitiu ao jovem aproveitar-se do desequilíbrio de Jakah devido a força intensa que o grandalhão aplicou no golpe, para que assim Doran pudesse aplicar-lhe seu próprio golpe à queima roupa. Concentrando toda sua vontade no punho, ele o sentiu mais pesado, mas mesmo assim não perdia a velocidade. O soco acertou em cheio o rosto de Jakah, fazendo com que o grandalhão caísse sentado no chão esfregando as mãos no rosto. Abrindo os olhos com um sorriso na face, Doran fitou o oponente no chão com uma postura triunfal.

    — Vocês nunca aprendem, não é mesmo, seus patet...

    Antes que terminasse sua fala, Doran desabou no chão com uma dor lancinante em sua cabeça, proveniente do golpe que Jorin lhe deu por trás com um pedaço de madeira. Já no chão, Doran sentiu sua visão escurecer, por isso tentou a todo custo resistir e se manter consciente enquanto era alvejado por chutes em sua barriga.

    — Desgraçado, você vai me pagar e vai pagar muito caro! — gritou Jorin com uma expressão de ódio no rosto. — Vamos, Jakah, levante e me ajude a acabar com esse idiota!

...

    — Que algazarra é essa, Tarred? Está atrapalhando minha leitura.

    O servo espreitando pelas janelas do casarão, observava dois garotos chutando outro no chão.

    — Meu senhor, parece que é uma briga de rua — disse o servo com uma expressão neutra no rosto.

    — Briga de rua, é? Nessa área da cidade? Isso é um tanto interessante. Quem está ganhando a briga Tarred? — questionou o homem exibindo uma expressão curiosa na face.

    — Meu senhor, me parece que não é uma briga muito justa, dois garotos estão chutando outro no chão.

    — Realmente não me parece nem um pouco justa, Tarred — falou o homem fechando o livro que estava lendo.

...

    Doran fechou seus olhos concentrando todas as suas forças para se manter consciente, enquanto a dor o afligia. Diversos socos e chutes eram desferidos em toda parte do seu corpo, e a compreensão de que morreria se não fizesse algo rápido logo o inundou.

    Tentando alcançar sua adaga que guardava em um dos bolsos de suas vestes, o garoto rolou seu corpo machucado, deixando as costas expostas para os dois agressores ao invés da barriga. Os dois irmãos pararam quando perceberam a ação de Doran, mas logo voltaram a espancá-lo.

    Alcançando sua adaga, Doran reuniu toda sua força restante e impulsionou seu corpo em um rolamento para longe de seus agressores, o que permitiu um tempo para ele se levantar.

    — Venham para cima, seus desgraçados! — falou o jovem com a adaga empunhada em uma das mãos. — Se for para morrer, levarei pelo menos um de vocês comigo.

    — Olha só, Jakah, ele tem uma adaga.

A expressão na face de Jorin ao dirigir tais palavra à Doran, era puro divertimento.

    — Adaga bonita, quero eu adaga — disse o grandalhão apontando o dedo para a adaga na mão de Doran.

    — Você ouviu meu irmão, seu estrume de cavalo, dá a adaga para ele agora!

    A dor que Doran sentia em seu corpo era intensa, por isso suas pernas vacilaram e ele desabou no chão. Mas mesmo com toda a dor assolando a mente do jovem, ele continuou a pressionar forte sua adaga. O divertimento correu pelo rosto de Jorin novamente, quando ele viu a cena que se passava à sua frente. Avançando para continuar o espancamento, os dois irmãos ouviram passos ecoarem no calçamento da rua ali perto.

    — Corra, Jakah, os cabeças de metal estão vindo!

    Antes dos dois irmãos dispararem pela rua noite adentro, Jorin foi até Doran e arrancou a adaga de suas mãos.

    — Isso agora é do meu irmão, seu idiota — disse o pequeno encrenqueiro cuspindo na cara de Doran e finalizando toda humilhação que o jovem sofreu naquela noite.

    Quando duas presenças avançaram a passos lentos até o local onde eles estavam, os dois irmãos já se encontravam muito longe daquele lugar. Doran queria fugir também, mas estava muito machucado, nem podendo sequer levantar do chão. A consciência do garoto estava pesada e a sua visão obscurecida, por isso ele mal viu quando dois sujeitos se aproximaram dele antes de desmaiar.

    Abrindo um dos olhos do garoto desmaiado no chão, o homem acenou para seu servo e falou:

    — Ele está bem, Tarred, apenas muito machucado.

    — Me impressiona que ele ainda esteja vivo, senhor, o garoto foi espancado por um bom tempo.

    — Isso é realmente intrigante, Tarred — disse o homem observando o garoto na sua frente e notando o porte franzino dele. — Pegue-o, Tarred, levaremos ele para casa e cuidaremos de seus ferimentos até sua recuperação.

    — Como ordenar, meu senhor.

...

    Doran sentiu o brilho do sol assolar sua pele quando as cortinas foram abertas. Abrindo seus olhos, ele notou o homem na sua frente de cabelos castanhos longos amarrados com um laço formando um rabo de cavalo, seu rosto era duro feito pedra e seus olhos também castanhos fitaram Doran enquanto o garoto acordava.

    — Onde estou e quem é você? — indagou o garoto confuso, enquanto vasculhava os bolsos de suas vestes em busca da sua adaga, lamentando mentalmente logo em seguida por não encontrá-la.

    — Bom dia, meu jovem, por gentileza queira me acompanhar que tudo lhe será explicado — disse o homem grande de rosto sério à Doran que o olhava com atenção.

    Relutante, Doran se levantou da cama e sentiu uma dor na costela pelo movimento súbito. Vendo o desconforto do garoto, Tarred o advertiu:

    — Vá com calma, meu jovem, seus machucados não sararam totalmente.

    Recordando de sua briga da noite passada na fonte, no qual foi espancado por Jorin e Jakah, o rapaz enrijeceu o maxilar lembrando da dor intensa que sentiu, mas logo voltou sua atenção a seguir o homem à sua frente, quando esse se pôs em direção a porta. Seguindo o homem, Doran notou o quarto no qual estava. Sua cama era feita de madeira de carvalho com detalhes em espirais esculpidos na cabeceira. O resto do quarto era pequeno, mais ricamente preenchido com uma mesa também de carvalho, onde uma lamparina se encontrava em cima. O garoto também observou um guarda-roupa imenso que tomava metade da parede oposta à janela do quarto, e se perguntou mentalmente quantas roupas caberiam ali dentro.

    Doran não tinha ideia para onde o homem à sua frente o levava, por isso o seguia com relutância observando tudo em sua volta. Saindo do quarto, o homem o levou por um corredor que dava para uma escada feita de ébano que descia em rodopio. A maioria dos móveis da casa era de madeira, variando entre carvalho e ébano, matérias primas abundantes nas terras ao sul de Karendol. Vendo a impaciência do garoto, Tarred o avisou:

    — Já estamos chegando, meu jovem.

    Ao descer a escada, Doran avistou um homem sentado em uma poltrona lendo um livro, com seus pés apoiados em um baquinho.

    — Meu senhor?

    — Sim, Tarred?

    — O jovem que o senhor mandou chamar, está aqui.

    Desviando sua atenção do livro que estava lendo, o homem observou Doran à sua frente.

    — Bom dia, meu jovem, queira sentar-se por favor.

    Relutante, Doran se sentou em uma cadeira de frente ao homem.

    — Olha, eu não sei o que está acontecendo aqui, mas seja o que for eu não roubei nada — falou Doran com uma face receosa.

    Com uma expressão curiosa na face, o homem abriu um sorriso quase imperceptível no canto do rosto.

    — Você está imaginando coisas, meu jovem, veja, eu o salvei na noite em que aqueles garotos o espancaram, e o Tarred aí cuidou dos seus ferimentos.

    — Você estava dormindo já faz dois dias seguidos, meu rapaz — disse Tarred em pé ao lado de Doran.

    Estreitando levemente o olhar para o homem à sua frente, Doran perguntou:

    — Por que você me ajudou?

    O homem abriu uma expressão surpresa na face.

    — Eu não gosto de brigas injustas, sabe, e aqueles dois não estavam sendo nada justos com você.

    Relembrando a noite em que ele teve a certeza que iria morrer, Doran fechou os olhos e respirou fundo.

    — Eu o agradeço por ter salvado a minha vida, ainda que não entenda o porquê de ter feito isso, mesmo assim tenho uma dívida com você.

    — Depois tratamos desse assunto — disse o homem acenando distraidamente com sua mão, dispensando a última fala do garoto. — Você ainda não me falou seu nome, meu jovem — falou o homem à frente do garoto.

    — Me chamo Doran — respondeu o jovem, enquanto o homem chamado Tarred oferecia-lhe um pedaço de pão sobre uma bandeja de prata, que o garoto aceitou com relutância.

    — Doran...

    O homem à frente de Doran, parecia saborear as palavras que saíram de sua boca.

    — Muito prazer, Doran, me chamo Friedrich e esse ao seu lado como você já deve ter me ouvido chamá-lo é Tarred, meu servo.

    — É um prazer, meu jovem — falou Tarred acenando com a cabeça para o garoto.

    Na mente de Doran rodeava pensamentos a todo vapor. Será que esse homem quer que eu o pague por ter me ajudado? Olhando em sua volta, o jovem notou o luxo da casa. Definitivamente eu não posso pagar a quantia que esse homem vai me pedir. Eu posso sair daqui? Eu devo sair daqui? Como saio daqui? Olhando novamente em volta do casarão, Doran notou a porta que dava para fora e se decidiu. Eu tenho que sair daqui!
Enquanto o homem na sua frente chamado Friedrich saboreava um vinho que seu servo trouxe, Doran aproveitou o momento de distração.

    Com um pulo, o jovem saltou da cadeira que estava e correu em direção a porta. Girando a maçaneta, o garoto ficou aliviado pela porta não está trancada. Olhando uma última vez para Friedrich, Doran murmurou entre dentes:

    — Me desculpe.

    Depois de tais palavras, o jovem saiu correndo a toda velocidade em direção a rua.

    — Senhor, devo...?

    — Não, Tarred, deixe o garoto, algo me diz que essa não é a última vez que nossos caminhos se cruzarão.

    Depois de ter corrido por tempo o suficiente para sair da região nobre no lado leste de Karian, Doran suspirou exausto passando a mão na testa repleta de suor.

    — Eu não poderia pagar o que aquele homem iria me pedir, mas tenho uma dívida com ele e pretendo fazer o possível para quitá-la.

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