Capítulo 2 - O Palácio / Parte 1/2

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    Enquanto Doran andava pelas ruas no centro de Karian, pensamentos corriam pela sua mente. Já fazia uma semana desde que ele fugiu da casa do homem chamado Friedrich que o salvou, e se sentia culpado por isso. Ele prometeu pagar a dívida ao homem por ter salvado a sua vida, mas fugiu por medo do que tal homem faria quando descobrisse que ele nada tinha. Tais preocupações eram irrelevantes no momento e por isso Doran focou no que estava à sua frente.

    Olhando mais adiante, o garoto avistou Harud vindo em sua direção segurando as rédeas de dois cavalos. O velho homem já de cabelos brancos na cabeça e barba por fazer, avistou Doran e lhe lançou um sorriso.

    — A quanto tempo, seu pestinha, se metendo em muita encrenca como sempre? — falou Harud se aproximando do garoto com um sorriso no canto do rosto.

    — Bom dia, seu velho rabugento, sou um homem de negócios agora, não me envolvo mais em problemas. E você, como andam seus negócios? — disse Doran exibindo um largo sorriso na face.

    Harud era um negociante de cavalos e sempre que podia ajudava o jovem, dando-lhe serviços que lhe rendiam belas quantias em moedas de cobre.

    — Já te disse para não me chamar de velho, garoto — disse Harud exibindo uma cara marrenta, o que rendeu a Doran boas risadas. — Os negócios têm piorado ultimamente, meu rapaz. Com a chegada do outono a maioria das pessoas evitam comprar cavalos, o feno fica muito caro e o clima muito ruim para cavalgar — informou o velho homem soltando um suspiro, enquanto dava um tapinha em um dos cavalos que carregava. — Estou vendo se consigo vender esses dois para garantir o sustento da semana — completou o negociante de cavalos.

    Doran fitou o homem com uma cara desesperançosa.

    — Então acho que não tem nenhum servicinho sobrando para mim, né?

    A expressão de Harud se tornou pensativa.

    — Hoje é seu dia de sorte, garoto. Consegui vender um cavalo de raça ao capitão da guarda real —  disse Harud exibindo satisfação e orgulho no rosto. — Mas infelizmente não posso ir deixar o cavalo essa semana no palácio, onde o capitão pediu. 

    — E você falou que os negócios estavam piorando. Capitão da guarda real, fala sério?

    —  Sim, sim, sim, mas para a gente pegar a bufunfa você vai ter que levar o cavalo até o palácio real e entregá-lo ao capitão.

    Doran nunca tinha ido ao palácio real e a empolgação por cogitar essa ideia estampou-se em seu rosto.

    — Você está brincando? É claro que eu vou!

    — Ótimo! Então vamos andando até o estábulo para você pegar o cavalo.

    Doran e Harud andaram pela rua que dava para o sul da cidade, onde se concentrava o foco de comerciantes ambulantes, artesãos e alfaiates. Enquanto andavam, Doran reparou em algumas pessoas que passavam por eles. Um homem com roupas extravagantes e poucos cabelos na cabeça foi o primeiro que despertou o interesse do jovem, provavelmente um homem de muitas posses deduziu o garoto, ou pelo menos queria dar a aparência que tinha, riu pensando na ideia.

    Uma mulher vendendo pães em uma cesta em cima da cabeça enquanto segurava um bebê no colo, ofereceu sua mercadoria a Doran que recusou com um leve aceno negativo de cabeça. Além de pães, outras iguarias também eram comercializadas, como vinhos, famosos por sua doçura em Karian e região, assim como queijos, limões e peixes de água doce. Doran se maravilhava com toda variedade de pessoas e produtos, pois quando morava no orfanato mal tinha tempo de reparar nessas frivolidades. O garoto balançou a cabeça afastando esses pensamentos, fazia 2 anos desde que o orfanato foi fechado e desde que ele saiu daquele inferno, e não queria lembrar daqueles tempos sombrios. Enquanto afagava a cabeça de um dos cavalos lhe fazendo carinho, Doran notou uma pessoa em particular além do garanhão. Era um homem alto, de cabelos castanhos amarrados em um coque e sua expressão era séria enquanto segurava uma cesta de compras em uma das mãos. O rapaz se esforçava para lembrar onde já viu aquele homem, mas a lembrança fugia de sua mente. O homem alto de roupas finas com uma combinação de coloração em preto e branco, destacava-se na multidão. Um garotinho que andava de mãos dadas com sua mãe, apontou o dedo para ele, perguntando a mãe quem era. A mulher olhou para o homenzarrão e baixou o braço do menino, apertando o passo para sair dali e brigando com o garoto na sequência. Em um estalo de pensamento a compreensão inundou Doran.

    — O servo do homem que me salvou! — murmurou o garoto, escondendo-se atrás do corpo do cavalo.

    — O que você está fazendo, garoto? — perguntou Harud olhando para o menino com uma expressão curiosa.

    — Humm... ééé... tem uma mancha estranha aqui na parte de baixo do cavalo, tô dando uma olhada para ver se tá tudo bem com ele.
    — Garoto estranho você, sabia, moleque? — afirmou Harud soltando uma risada. — A gente tá quase chegando, aí eu dou uma olhada nessa tal mancha.

    Doran olhou para trás grato pelo servo não ter notado sua presença. A dívida pelo senhor do homem ter salvo sua vida pesava sobre sua mente, e o sentimento de quitá-la ficava cada vez mais forte.

...

    Entrando na sala de estar, Tarred fitou seu senhor, um homem grandioso de postura ereta, vestindo uma armadura brilhante com uma fênix intrincada no meio do peitoral.

    — Meu senhor?

    Notando seu servo enquanto vestia a armadura, Friedrich falou:

    — Já voltou das compras, Tarred? Espero que tenha comprado meus limões.

    Mantendo a serenidade no olhar, Tarred respondeu:

    — Claro que comprei, meu senhor, mas há algo que desejo lhe contar que talvez seja do seu interesse.

    Olhando fixamente para o servo à sua frente, Friedrich fez um aceno com a mão.

    — Desembucha logo, homem! Tenho que ir ao palácio ver o rei ainda hoje.

    — Ver o rei, meu senhor? Ele requisitou a vossa presença?

    — Sim, mas não faço ideia do que ele quer comigo.

    — Devo preparar o elixir, meu senhor?

    — O elixir?

    Um estalo de pensamento reavivou a memória de Friedrich.

    — Acho melhor não, Tarred. Dependendo da minha conversa com o rei, precisarei me lembrar de certas coisas.

    — Como desejar, meu senhor — disse Tarred antes de começar uma caminhada até a cozinha do casarão.

    — Tarred?

    — Sim, meu senhor? — respondeu o servo parando bruscamente sua caminhada.

    — Não está esquecendo de nada? — perguntou Friedrich, franzindo o cenho.

    — Perdoe-me, meu senhor, o que queria lhe falar é que encontrei no mercado o jovem que salvamos há uma semana atrás.

    Uma expressão de curiosidade se formou no rosto de Friedrich.

    — Como ele está? Os ferimentos já estão curados?

    — Apenas o vi de relance e quando me notou tratou de se esconder. Não sei o porquê de tanto medo, ao ponto de sair correndo naquele dia logo após saber que o salvamos.

    — Não o culpo, Tarred, esses garotos de rua sofrem bastante e desde o fechamento do último orfanato a situação só piorou para eles.

    — Ouvi boatos sobre o incêndio terrível que aconteceu há alguns anos nesse orfanato, meu senhor, creio que esse garoto viveu situações horrendas lá dentro.

    — Bem, não podemos tirar conclusões precipitadas, Tarred, ele pode não ser daquele orfanato que foi reduzido a cinzas há 2 anos atrás, mas sim, apenas um garoto de uma família pobre que estava sofrendo perseguição daqueles valentões, acabando por ficar encurralado por eles nessa parte nobre da cidade.

    Friedrich deu um salto da poltrona onde estava.

    — Bem, devo me apressar, não posso deixar o rei esperando.

    — Tenha uma boa caminhada até o palácio, meu senhor.

    — Até mais, Tarred — disse o homem de armadura lançando suas últimas palavras a seu servo, antes de sair pela porta.

    Depois de uma caminhada de uma hora pela rua norte, Friedrich finalmente chegou aos portões do majestoso palácio. A construção magnífica que se erguia perante ele, ocupava o centro da rua norte de Karian e era rodeada de lendas acerca de sua construção. Muitos diziam que foi presente dos descendentes da terra para os homens, outros diziam que o imenso palácio já estava ali antes mesmo do êxodo da humanidade para as novas terras, e há até mesmo quem diga que foram os próprios Karendoneses que construíram o palácio logo após o êxodo, com o conhecimento antigo que se perdera com o passar dos séculos. Todas essas histórias eram mentiras, ou pelo menos meias verdades e Friedrich sabia disso.

    Olhando para cima e vislumbrando a bandeira de Karendol tremular no topo do palácio com a brisa do vento, Friedrich inspirou uma golada de ar e forçou seus pensamentos a voltarem à realidade.

    Olhando para frente, o homem de armadura se deparou com um jovem guarda que estava guardando os portões de entrada para o palácio.

    — Por gentileza, meu jovem, me leve até o rei, estou aqui a seu chamado.

    O jovem olhou para a fênix intrincada no peitoral da armadura que o homem vestia e acenou com a cabeça.

    — Me acompanhe por favor, meu lorde, o rei está à vossa espera.

    — Por favor, meu jovem, pare.

    O jovem guarda de cabelos loiros com uma espada presa na cintura, exibiu uma expressão de confusão em seu rosto, diante o que o homem à sua frente falou.

    — Parar? Com o que, meu lorde?

    — Parar de me chamar assim, eu não sou um lorde.

    O homem se espantou ao ouvir as palavras de Friedrich.

    — Perdão, meu Senhor...?

    Friedrich abriu um pequeno sorriso no canto da boca.

    — Vamos, me leve logo até aquele velho rabugento, estou com saudades do meu velho amigo.

...

    O cavalo que Doran segurava as rédeas ao seu lado era magnífico. De pele marrom por inteira, boa forma e uma vontade insaciável por correr. Demorou bastante tempo para o rapaz acalmar o bicho que se agitava freneticamente no estábulo, mas com uma boa dúzia de maçãs o garanhão finalmente relaxou.

    Seguindo pela rua norte, Doran observou grandiosos casarões que se estendiam até uma pequena muralha, que demarcava o início da área nobre da cidade. No centro da rua norte, se erguia o imenso palácio da família real de Karian, capital da gigantesca nação Karendol. Homens e mulheres andavam pelas ruas vestidos com suas roupas finas. Doran, calculou mentalmente quanto uma só roupa daquelas custava, mas afastou o pensamento quando um guarda o abordou.

    — Ei, garoto, aonde você vai com esse cavalo?

    O guarda era um homem calvo, que olhou Doran dos pés à cabeça, exibindo uma expressão desdenhosa diante a simplicidade das roupas do rapaz.

    — Tenho licença do capitão da guarda real para entregar este garanhão no palácio, senhor.

    Tirando de um dos bolsos da sua calça de pano, Doran entregou um papel amassado ao guarda. Harud havia lhe falado que ele precisaria daquela licença para vaguear pelas ruas da área nobre da cidade, como também para ter acesso ao palácio.

    — Capitão da guarda real é? você? — indagou o guarda calvo com indignação no rosto, enquanto olhava para a licença e de volta para Doran. — Seja rápido nessa sua "entrega", garoto — completou o guarda.

    O homem se afastou de Doran balbuciando algo sobre plebeus imundos terem permissão de andar por ali. Doran correu atrás do guarda que andava a passos largos, quando percebeu que algo faltava em suas mãos.

    — Senhor?

    — Você de novo? Diga logo, o que quer?

    Antes de Doran responder, o garoto observou um homem além do guarda vindo em sua direção. Era um homem alto e de ombros largos, trajando uma armadura pesada com uma fênix gravada no meio do peitoral. Doran lembrou rapidamente quem era aquele homem, pois nunca esqueceria o rosto daquele que o salvou.

    — Vamos, plebeu, desembucha logo, não tenho o dia todo!

    — Min… minha licença, senhor.

    Olhando para o papel na sua mão e de volta para Doran, o homem atirou o papel no chão e saiu a passos longos novamente enquanto falava:

    — Não demore muito aqui na área nobre, plebeu, esse não é o seu lugar.

    Doran apanhou rapidamente sua licença do chão e saiu em uma quase corrida daquele lugar. Depois de correr por um quarteirão inteiro incitando o garanhão a apressar seu galope, o garoto finalmente tomou coragem e olhou para trás. Ele suspirou ao notar que o homem não estava mais ali, mas, ter fugido duas vezes no mesmo dia, pesou em sua consciência. Doran não era um covarde, gostava de encarar seus problemas de frente, por isso toda aquela situação com aquele homem estava o atormentando, e ele precisava dar um jeito nisso. Dando tapinhas no couro do cavalo, o rapaz falou:

    — É, amigão, acho melhor a gente terminar logo com isso, para eu dar o fora daqui o mais rápido possível.

    Mesmo o palácio se erguendo até os céus e podendo ser visto de longe, Doran se atrapalhou com os cruzamentos das ruas e acabou demorando mais do que o esperado para chegar em seu destino.

    — Finalmente chegamos, amigã... — falou Doran perdendo sua fala no processo, quando olhou até o topo do palácio e vislumbrou de perto tamanha grandiosidade.

    Engolindo em seco, o garoto avançou até os portões da majestosa construção, segurando as rédeas do garanhão ao seu lado.

    — Bom dia, senhor, tenho uma licença para entregar este cavalo ao capitão da guarda real.

    O guarda do portão observou o garoto dos pés à cabeça e pegou a licença da sua mão.

    — Tá tudo certo, garoto, pode ir.

    O menino suspirou por não ter sido tratado com indiferença pelo guarda, como fora pelo outro que o abordou mais cedo.

    — Talvez nem todos os cabeças de metal sejam tão mesquinhos como eu imaginei —  sussurrou o rapaz para si mesmo enquanto ultrapassava os portões do palácio.

    O garoto seguiu pela direção que o guarda lhe indicou até os aposentos militares do capitão, enquanto se maravilhava com a beleza do palácio à sua volta. Um jardim imenso se estendia à sua frente, com diversos arbustos, árvores e flores. Diversas pessoas, carroções de mercadorias e servos vagueavam por aquele jardim, algumas pessoas olharam de relance para Doran, mas a maioria ignorou sua presença e seguiram com suas atividades.

    Depois de algum tempo vagando pelo palácio, tentando achar os aposentos do capitão pelo caminho que o guarda do portão lhe indicou, o garoto acabou chegando a uma área aberta, a leste do jardim onde se concentrava o maior fluxo de pessoas. Era uma área espaçosa com homenzarrões lutando com espadas de um lado e outros atirando flechas em alvos de madeira em forma de pessoas do outro.

    Andando distraído observando o que acontecia à sua volta, o jovem mal percebeu quando esbarrou de repente em alguém.

    — Perdoe-me, senh…

    Olhando para sua frente, Doran se deparou com uma moça caída. Ajudando ela a levantar-se, o rapaz a fitou por um segundo que mais pareceu uma eternidade. Era a garota mais linda que o menino já viu. Cabelos longos castanhos desciam pela cintura e olhos negros como uma noite sem luar, o hipnotizaram por um instante eterno.

    — Perdão, minha lady — falou o menino tratando de se ajoelhar o mais rápido possível, que por consequência do movimento súbito, acabou puxando as rédeas do cavalo que por sua vez abaixou a cabeça em um movimento que lembrava uma reverência.

    — Levante-se, por favor, a culpa foi toda minha por ficar andando distraída por aí.

    Doran levantou, mas as palavras não conseguiam sair da sua boca. A beleza da garota era estonteante, o que fez algo começar a queimar dentro do corpo do rapaz, uma sensação estranha que nunca tinha sentido antes. Ele queria pular de alegria e ao mesmo tempo se esconder com medo. Queria fugir dali o mais rápido possível, mas também queria ficar ali eternamente olhando para aqueles olhos.

    — Bonito, esse seu cavalo — falou a garota acariciando a cabeça do garanhão.

    — Ele não é meu, minha lady! Estou apenas o escoltando até seu verdadeiro dono!

    Doran forçou as palavras a saírem de sua boca, mas sua voz acabou saindo mais alta do que ele esperava. A garota riu diante a situação cômica e logo falou:

    — Gostei de você, escoltador de cavalos, muito prazer, me chamo Adalia.

    O garoto não sabia como reagir diante aquela situação e acabou ficando com a cara toda vermelha, por fim, nada falou.

    — Se não sou digna de seu nome, devo me retirar. Com sua licença, Sr. escoltador de cavalos — disse a garota rindo da cara envergonhada do jovem.

    Enquanto a jovem se afastava, pensamentos corriam pela mente do rapaz e a vergonha por não ter falado seu nome também.

    — Doran!

    A garota olhou surpresa para trás parando subitamente sua caminhada.

    — Meu nome é Doran, minha lady — falou o garoto fazendo uma reverência desajeitada.

    — Muito prazer, Doran.

    O rapaz sabia que aquele último sorriso lançado pela garota antes de ir embora, invadiria seus pensamentos pelo resto de sua vida.

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