Capítulo 3 - Poderes Antigos / Parte 1/2

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    Depois de muito tempo vagando pela ala leste do palácio, onde mais tarde Doran deduziu se tratar da área reservada aos soldados da guarda real, finalmente o garoto conseguiu encontrar o capitão da guarda e entregar o garanhão, recebendo em troca vinte moedas de ouro como o prometido. Depois do negócio ser fechado, Doran se encontrava vagando pelos corredores do grande palácio, ele não perderia a chance de explorar toda a grandiosidade do local e sabia que uma chance como aquela não apareceria novamente.

    Dobrando um corredor, o garoto se deparou com duas servas que o olharam diretamente, mas logo desviaram o olhar e seguiram seu rumo. Um soldado que estava posicionado ao lado de uma porta, mais atrás, também fez o mesmo com o rapaz. Sua habitual jaqueta de couro de veado por cima de sua camisa de seda barata, com calça de pano simples, não eram roupas nada adequadas para aquele tipo de local e Doran sabia disso.

    — Tenho que me apressar, se não vou acabar arranjando problemas.

    Dobrando outro corredor, o garoto se deparou com um largo pátio a sua esquerda e a sua frente um corredor que se estendia até uma interseção que levava a outro complexo de corredores. Para Doran que nunca tinha estado em um local tão grande, o palácio era um verdadeiro labirinto, por isso todo passo que o garoto dava ele tratava de tomar extremo cuidado para não se perder.

    Voltando sua atenção para a sua esquerda, o garoto pode observar duas figuras se encarando no centro do largo pátio. O primeiro era um rapaz de estatura semelhante a dele, com cabelo castanho levemente avermelhado. O segundo era um homem mais alto de cabelos negros com traços grisalhos, trajando uma armadura pesada. Um estalo em sua mente reavivou a memória de Doran, e o garoto andou ofegante para trás até encostar em uma parede.

    — Friedrich, eu tenho certeza que é ele... —  sussurrou o rapaz para si mesmo.

    Doran olhou para a bolsa com vinte moedas de ouro que carregava em um dos bolsos escondidos na sua jaqueta e falou novamente para si mesmo em um quase sussurro:

    — Perdoe-me, Harud, mas preciso fazer isso.

    Desencostando da parede e voltando a observar o pátio, o garoto pegou o saco de moedas e o apertou firmemente em sua mão. Respirando fundo, Doran estava pronto para confrontar Friedrich e pagar sua dívida, mesmo que para isso criasse uma nova dívida com Harud. No momento em que Doran deu o primeiro passo para ir até Friedrich, as duas figuras começaram a duelar. Recuando um passo e se escondendo atrás de um pilar que sustentava uma das paredes do pátio, o jovem observou o confronto que se passava na sua frente. Por fim, decidiu ficar assim até a luta acabar e ter uma chance de falar com Friedrich a sós.

...

    Avançando com a espada de madeira, Kael atacou diretamente Friedrich que facilmente rebateu e desviou para o lado chutando o rapaz no processo, o que fez Kael desequilibrar e cair no chão.

    — Plebeu miserável! Como ousa!

    Fazendo uma estranha reverência com a espada, Friedrich falou sarcasticamente:

    — Mil perdões, vossa alteza, prometo pegar mais leve.

    Endurecendo o maxilar em uma clara expressão de raiva, Kael se levantou do chão entrando em guarda novamente com sua espada. Olhando Friedrich atentamente, o jovem príncipe tentou entender o porquê dele ser tão ágil, mesmo com uma armadura tão pesada. A postura desleixada do homem na sua frente irritava o jovem, que avançou novamente contra seu oponente.

    Aproveitando seu tamanho baixo em relação a seu adversário, Kael mirou diretamente nas pernas para desequilibrá-lo. Friedrich recuou e adotou uma guarda mais defensiva. Kael continuava atacando, mas algo estava estranho e Friedrich notou isso. O calor no ambiente havia aumentado e o suor começou a percorrer pelo corpo do homem com armadura. Jogando sua espada para o lado e levantando suas mãos no processo, Friedrich declarou sua rendição.

    — Já chega, garoto, não vim aqui para brincar com você.

    Kael apontou sua espada para a garganta do seu oponente enquanto falava:

    — Pegue sua espada, plebeu imundo, vou te ensinar a nunca mais desafiar a realeza novamente.

    Afastando a espada com as pontas de seus dedos, Friedrich respondeu a provocação do príncipe:

    — Eu tenho uma pergunta importante para te fazer.

    Kael entrou em guarda com sua espada enquanto retrucava:

    — Se não apanhar sua espada nesse momento, o farei se arrepender do dia em que nasceu.

    Friedrich ignorou as palavras do príncipe e prosseguiu falando:

    — O que você sentiu quando as chamas o envolveram por completo?

    O príncipe relaxou sua guarda e arregalou os olhos.

    — Como você sabe disso? Meu pai não foi? Ele te contou!

    Vendo o desconforto do jovem ao tocar no assunto, Friedrich continuou.

    — Era como se toda sua existência fosse queimada, mas você não sentisse dor alguma, não dor física, algo além... Sua própria alma foi devorada pelas chamas, você sentiu como se toda a agonia e desespero que habitava no mundo pulsasse no seu corpo por um instante eterno... Até que tudo aquilo que o afligia cessou, dando lugar a algo bom... Era como se você estivesse vivo de verdade, aposto que você nunca se sentiu tão vivo como naquele momento.

    O garoto parecia perdido em lembranças de um passado próximo enquanto ouvia a descrição que Friedrich lhe dava.

    — Como você sabe de tudo isso?

    — Isso não vem ao caso, garoto —  falou Friedrich colocando a mão no ombro do príncipe. — Eu posso te ajudar e é isso que importa, se você me permitir, é claro.

    O jovem lançou um olhar perdido para a mão em seu ombro.

    — O que é isso que houve comigo? Até mesmo meu pai está olhando como se eu estivesse doente — disse Kael olhando fixamente para os olhos de Friedrich. — Não importa se você é um plebeu, se você puder me ajudar, te darei tudo que um homem vivo pode querer, apenas me ajude, por favor.

    Friedrich notou que os olhos do príncipe estavam começando a lacrimejar e novamente sentiu o clima ao seu redor esquentar abruptamente.

    — Eu sei que você está confuso com tudo isso e que coisas estranhas vem acontecendo, coisas que você não consegue explicar... Eu vou te ajudar, meu jovem, não porque eu quero alguma coisa — explicou Friedrich abrindo um pequeno sorriso no canto do rosto. — Porque o que eu quero de verdade, nenhum homem vivo pode me dar. Eu vou te ajudar porque eu quero e também porque devo muitas a seu velho pai.

    Vendo o garoto se acalmar e o clima ao redor voltar ao normal, Friedrich retirou a mão do ombro do jovem. Um barulho vindo de um guarda com armadura caminhando até eles, interrompeu a conversa repentinamente e os dois olharam para a figura que se aproximava.

...

    Doran observava atentamente a luta que se passava na sua frente, se impressionando com cada movimento que as duas figuras desferiam uma contra a outra. De repente, Doran notou que Friedrich jogou sua espada de madeira no chão em sinal de rendição.

    — Bem, é agora ou nunca.

    Preparado para dar o primeiro passo em direção a Friedrich, o jovem é impedido por uma voz.

    — Pare aí mesmo!

    Olhando subitamente para trás, o garoto arregalou os olhos ao ver um guarda apontando uma espada em direção a seu rosto.

    — Se-se-senhor, euu....

    O guarda endureceu o rosto, enquanto olhava o jovem à sua frente dos pés à cabeça.

    — O que você está fazendo aqui, garoto?

    Olhando para os lados, confuso, Doran forçou sua mente a pensar em uma desculpa rapidamente, mas seu coração estava disparado por conta daquela espada apontada bem para o centro de sua face. Fechando seus olhos e confiando naquela parada que sempre funcionava quando ele estava em perigo, o rapaz concentrou toda sua vontade em desfocar sua atenção, entrando em um estado de transe onde toda a realidade podia ser deixada de lado facilmente. Nesse estado os problemas fluíam e pareciam insignificantes, como também todas as soluções pareciam claras como uma noite de lua cheia.

    — Sou escudeiro daquele homem atrás de mim, senhor, estou apenas o acompanhando.

    O guarda lançou um olhar descrente, enquanto olhava para Friedrich e em seguida de volta para Doran.

    — Vamos confirmar isso então, garoto — disse o guarda em um tom firme segurando o braço de Doran com força e o levando até o centro do pátio.

    Friedrich olhou para o guarda que se aproximava e notou a figura ao seu lado. A compreensão de quem era aquele jovem que se aproximava, logo veio a sua mente e por causa disso ele cumprimentou o garoto.

    — Tinha certeza que iríamos nos encontrar novamente, meu jovem, mas não em uma situação tão inusitada como essa.

    Olhando diretamente para Friedrich, Doran tentou falar o mais formalmente possível. 

    — Certamente iríamos nos encontrar, meu senhor, já limpei e alimentei vosso cavalo assim como me ordenou.

    Friedrich olhou confuso para o garoto sem entender nada.
Já a paciência de Kael se esgotou e o garoto explodiu.

    — Por Primardia! O que está acontecendo aqui, soldado? Quem é este ao seu lado?

    — Perdão, vossa alteza, não queria o interromper, mas este garoto.

    O guarda empurrou Doran para a frente.

    — Ele estava observando o treinamento de vossa alteza, e quando o abordei ele alegou ser escudeiro do senhor — disse o guarda concluindo sua fala apontando para Friedrich.

    — Meu escudeiro, é?

    Soltando um sorriso com uma expressão curiosa no rosto, Friedrich olhou para o garoto e tentou compreender a situação que se passava ali. Por fim, Friedrich resolveu entrar no jogo de Doran e ver onde tudo aquilo iria dar.

    — Sim, sim, esse jovem é meu exímio escudeiro — falou Friedrich dando uma piscadela para Doran.

    O guarda bateu continência e pediu perdão a Doran pelo desentendimento, por fim se retirando do local. O garoto suspirou aliviado por seu plano ter dado certo e se aproximou de Friedrich com o saco de moedas em mãos.

    — Lhe devo muito, meu senhor, e cada vez que o senhor me salva, aumento mais ainda minha dívida, por favor aceite isso como forma de pagar tudo o que você fez por mim — disse Doran esticando o saco de moedas para entregar a Friedrich.

    — Você entendeu tudo errado, meu jovem, você não me deve nada e eu não quero nenhuma de suas moedas — afirmou o homem negando as moedas do garoto.

    Antes que Doran pudesse responder, Kael o interrompeu.

    — Me escutem, eu não quero ouvir conversas irrelevantes vindas de plebeus como vocês, então tratem de encerrar logo esse assunto.

    Vendo toda a arrogância do príncipe, Doran falou:

    — Conheço alguém chamado Jorin, e até hoje pensei que ele era o cara mais idiota que já existiu.

    Kael olhou confuso para Doran.

    — E o que eu tenho haver com isso, plebeu?

    — Você ganha de lavada dele — disse Doran sorrindo.

    Doran soltou uma alta gargalhada e Friedrich não se conteve e acabou por rir também.

    Kael explodiu em raiva e fez um movimento com sua espada de madeira mirando na bolsa com moedas de Doran, que acabou estourando e espalhando moedas de ouro para todo lado.

    — Seu miserável, porque fez isso?!

    Doran partiu para cima de Kael lançando um soco na face do príncipe, que caiu no chão com o impacto. Kael arregalou os olhos desacreditado por alguém ter o socado, pois por ser da realeza ele nunca tinha sido confrontado tão abertamente em toda sua vida. Olhando para Doran com uma expressão de pura raiva o príncipe gritou:

    — Você vai pagar caro pelo que fez, plebeu imundo!

    Pegando sua espada de madeira, Kael avançou sobre Doran que foi alvejado pelas investidas do príncipe. Toda a situação se desenrolou muito rápido para que Friedrich pudesse impedir, e o atrito entre os dois garotos já estava formado para se voltar atrás.

    — Isso pode ser interessante — sussurrou Friedrich para si mesmo. — Ei, vocês dois!

    O grito ecoou por todo o pátio, e tanto Kael que atacava quanto Doran que se defendia pararam subitamente.
    — Se querem lutar! Lutem com honra! — falou Friedrich sorrindo pelo canto da boca e jogando a espada de madeira que estava no chão para Doran.

    O garoto pegou desajeitadamente o pedaço de madeira entalhado como espada e segurou firmemente com suas mãos. Kael olhou para Friedrich e falou:

    — Honra? Ele socou a cara do príncipe de todo o reino de Karendol, toda a honra que ele teria em uma vida foi embora por esse ato.

    Quando Doran ouviu o garoto à sua frente falar quem era, todo seu corpo gelou e o desespero tomou conta de si.

    — Agora que já tô ferrado, vou até o fim — sussurrou para si mesmo. — Ei, seu idiota, não me importa quem você é, vou te dar uns dezenove socos ainda para pagar pelas vinte moedas que você derrubou, se bem que aquele primeiro valeu por uns dez — concluiu Doran sorrindo.

    Sem responder à provocação do seu oponente, Kael avançou novamente com sua espada para cima de Doran, que tentou se defender a todo custo com a espada em suas mãos. Com a perícia e experiência superior, Kael conseguiu quebrar facilmente a defesa de Doran que foi golpeado por diversos ataques simultaneamente. Doran sabia que estava perdendo, e que os ataques do príncipe estavam machucando seu corpo constantemente, por isso ele recorreu novamente àquilo que ele não sabia explicar. O garoto fechou os olhos e respirou fundo, deixando toda sua vontade fluir por seu corpo. Kael parou de avançar ao perceber seu oponente fechando os olhos.

    — Você é louco, plebeu, quem em sã consciência fecha os olhos para seu adversário em meio a uma luta?

    Vendo a atitude inusitada de Doran, Friedrich aumentou sua curiosidade em relação ao garoto.

    Sentindo algo fluir por seu corpo, Doran concentrou esse “algo” em seu punho direito, sentindo ele ficar mais pesado no processo. Jogando sua espada no chão, o garoto aproveitou o tempo em que o príncipe parou de atacá-lo, para enfim lançar seu próprio ataque.

    Kael se assustou com o repentino avanço de seu adversário, por isso se colocou em guarda defensiva com sua espada. Diversas possibilidades passaram na sua cabeça no mesmo instante: Seu oponente largou a espada no chão para distraí-lo? Iria fingir um ataque instigando-o a atacá-lo, para armar um contra-ataque e o derrubá-lo em seguida? Os diversos treinamentos que teve afiaram sua mente para esse tipo de situação, e Kael estava pronto para tudo que seu oponente viesse a tentar.

    Firmando mais ainda sua defesa, o jovem príncipe esperou o ataque. Doran atacou com seu punho diretamente a defesa do príncipe, que esboçou uma expressão surpresa e defendeu-se com a espada. A força proveniente da vontade concentrada no punho de Doran em contato com a espada de madeira de seu adversário, rompeu a defesa do príncipe partindo ao meio sua espada. Com a força do choque, Kael foi arremessado para trás e Doran percebeu que estava mais forte, pois nunca tinha concentrado tanta força antes em um golpe.

    Friedrich arregalou os olhos, surpreso com o que Doran fez, sussurrando entre dentes uma única palavra:

    — Nandoriano...

    Kael que estava no chão atordoado pelo golpe que sofreu, recobrou rapidamente sua consciência e olhou freneticamente para os lados em busca de algo que pudesse lhe ajudar. Vendo seu objetivo, ele avançou de mãos nuas para cima de Doran que se surpreendeu e se preparou para receber um ataque, mas Kael por sua vez mirou no que estava além do seu oponente. Desviando Doran e dando uma cambalhota em seguida, o príncipe apanhou a espada que seu adversário jogou no chão e se colocou em guarda esperando a reação do seu oponente. Doran se surpreendeu com a agilidade de Kael e se aproximou devagar do príncipe em posição de luta. Kael estava incrédulo com toda a situação, pois nunca imaginaria que um plebeu o desafiasse, por causa disso uma intensa raiva borbulhava dentro dele, e seu corpo começou a ficar quente sem ele perceber. Doran notou o clima ao seu redor esquentar e sentiu que algo estranho estava acontecendo com o seu adversário, percebendo isso ele fechou os olhos e deixou sua vontade fluir pelo corpo se preparando para o que podia acontecer.

    — Desgraçado, não vou permitir que me humilhe novamente — disse o príncipe apertando firme sua espada e atacando Doran diretamente.

    Doran concentrou sua vontade na audição e percebeu o som das passadas do seu adversário se aproximando. Calculando pelo som, o garoto conseguiu prever a direção por onde seu adversário iria atacar, sabendo disso ele concentrou toda sua força no punho que impulsionou para para colidir diretamente com o ataque do príncipe. Kael começou a sentir cada vez mais raiva enquanto avançava, e inconscientemente ele fez com que sua espada de madeira entrasse em chamas.

    — Aaaahhh!

    O grito foi proferido pelos dois garotos e a onda de choque proveniente da colisão dos ataques, produziu um som metálico que ecoou fortemente por todo o pátio.

    — Já chega, os dois!

    Tendo se colocado em meio aos dois garotos, Friedrich recebeu toda a colisão dos ataques em sua armadura.

    Kael olhou para sua espada e percebeu que toda a extensão dela, a não ser a empunhadura, estava em chamas. O garoto largou a espada no chão e olhou para suas mãos no processo.

    — Como eu fiz... isso?

    Friedrich estava mais que nunca perdido em seus pensamentos, memórias o invadiam em uma torrente constante e ele fez um esforço colossal para voltar à realidade.

    — Um nandoriano em Karian e um possível descendente do fogo despertado... vocês me surpreenderam de verdade, meus jovens.

    Friedrich olhou diretamente para Doran e falou:

    — Você vem comigo e não tem discussão.

    O garoto iria começar a protestar, mas Friedrich o impediu.

    — Venha comigo e essa sua dívida que acha que tem comigo está paga.

    Depois de um longo suspiro, Doran concordou com a cabeça.

    — Certo, eu vou.

    Friedrich desviou o olhar para Kael que continuava olhando incessantemente para suas próprias mãos.

    — Eu sei que tudo está mais confuso do que nunca, meu jovem, mas eu te prometo, te darei as respostas para todas as suas perguntas — falou Friedrich tentando confortar o garoto.

    Sons de passos se aproximaram do local onde os três estavam e todos olharam para os recém chegados.

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