Gehena

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Cruzando a larga entrada do teatro podia contemplar as estrelas do céu noturno, estava límpido demonstrando todos os adornos luminosos possíveis, um cenário o qual mal esperava, sentia que jamais as veria novamente em um lugar tão iluminado.

-Foi impressão minha ou o tempo aí dentro passa mais depressa ? -Perguntava a Mavis que acompanhava a saída.

-Acho que sim. -Ela falava rindo -Pode ser pela peça de hoje ser muito boa também.

-Achei o mesmo ! -Falava -Nunca imaginei que acharia uma canção sobre a tragédia numa guerra tão bonita.

-Espera, você entendeu tudo na peça ? Quer dizer, boa parte ficou em linguagem antiga...

-Me ensinaram no templo. Vocês não aprendem isso na cidade ?

-Não ! O Palianês já virou uma língua morta.

-Oh. -Exclamei -Acho que faz algum sentido, assim os antigos continuam...antigos.

-Não enquanto gente como você ainda se lembrar deles.

-Gente como eu ? -Perguntava intrigada.

-Sabe, legal e generosa. Do tipo que não faz mal a um ser vivo sem uma boa razão. -Mavis falava enrolando uma das mechas de cabelo no mindinho -É de dar certa inveja.

-Muito obrigada, Mavis ! -Sorri por um instante com a satisfação de ser elogiada, não era todo dia que acontecia. -Foi assim que me ensinaram a ser e agir...eu sou grata, claro, mas seria bom se eu soubesse ir além disso.

-Como ? -Ela pedia pelos exemplos.

-Eu não sei direito...ser mais como você, por exemplo. -Parava em frente a uma loja e estendia a mão para tocar o vidro -Eu queria olhar para aquele vestido na vitrine e pensar que eu ficaria bonita nele, digna de uma das tapeçarias de Atena.

-Quanto drama. -Ela retrucou -É claro que você ficaria !

-Claro que não ! A minha aparência é diferente demais dos outros, nem cabelo eu tenho.

-Gehena, você não deveria pensar essas coisas de si mesma...

-Você pensou, eu tenho certeza. -Respondi de imediato.

-Eu pensei...e mesmo assim procurei não te reduzir a só uma cabeça raspada...e consegui ! Sem muito esforço, inclusive, você é incrível de jeito que é Gehena. -Ela sorria pondo a mão sobre o meu ombro -Além disso, se o problema for o seu cabelo, posso te ajudar a cuidar dele.

-Não sei se é uma boa ideia...essa é uma tradição e eu sou a última que ainda a segue.

-Eu não sei muito de tradições e religiões num geral, nas se você é a última em alguma coisa, quer dizer que a decisão de continuar é apenas sua, não ?

-Tem razão...-Concordei pensativa.

-Por que mesmo vocês precisam fazer isso ?

-É uma maneira de deixar a aparência em harmonia com o ambiente e sincronia com a natureza. -Respondia enquanto observava os arredores -No entanto, parece que as coisas se inverteram por aqui.

-Chega a ser insano não concorda ? -Ela ria -Nos registros dos companheiros de Zirkon, o Feroz e primeiro imperador de Huologard, raças como mermans e fiminis apareciam como monstros que devoravam Vilders e usurpavam as terras de qualquer um, e hoje em meio de tantos, o centro das atenções é você por ter um corte de cabelo diferente.

-Isso sim é uma bobeira. -Concordei tentando não sorrir mais que o comum -Sem dizer...

Não conseguia completar o que diria, as palavras ficaram presas na minha garganta pelo momento. Sentia o corpo leve, os pensamentos me fugiam a linha por completo, os joelhos chacoalhavam sem aguentar o peso que suportavam, me segurava num dos postes próximos junto de Mavis, que parecia estar no mesmo problema. Demorei a perceber isso pela conversa, mas agora estávamos separadas do resto da multidão, éramos possivelmente as únicas pessoas a passar pela rua naquele momento. O chão, as pedras, os postes, as fontes, todos foram construídos usando calcário branco e polidos sem a mínima imperfeição, como se extraíssem as pedras da lua para forjar aquele lugar. Ao longe, passos se aproximavam de nós duas com o ranger de placas metálicas colidindo em encontro. Em um esforço, levantei a visão para fitar quem se aproximava, mal conseguia enxergar, apareciam riscos estáticos em qualquer direção como se as funções do cérebro gradativamente esquecessem de operar. 

O Conto dos Exilados:Reflexos de uma utopia opacaOnde histórias criam vida. Descubra agora