Mavis Demiurgo: Aos Velhos Hábitos

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-Aonde você queria me levar mesmo ?

Págo bocejava as palavras para esfregava as olheiras que marcavam suas noites mal dormidas, das quais compartilhava algumas. Sonolento, o garoto marchava guiado pela vã lembrança dos próprios músculos de andar, não só pelo fato de dormir feito uma pedra todas as noites, afinal a lua caíra do céu algumas horas atrás na madrugada, para que apenas eu e o príncipe de gelo estivéssemos acordados, ao menos esperava por isso, caso contrário tudo cairia água abaixo.

-Em um lugar, eu já disse !-Sussurrava com uma voz mais áspera.

Ele se calava insatisfeito com a resposta que levara. Apesar da empatia, não sabia como explicar que lugar era exatamente, não sabia o nome da maioria dos cômodos daquele lugar, fora que me parecia sem necessidade decorá-los, ele entenderia assim que chegássemos.

-É aqui.

Aquela era uma espécie de jardim interno do Qatarat Alcmar, não muito pequeno, tampouco grande em comparação aos outros quartos e salões. Uma lagoa cobria a maior parte do espaço, a água era parada longe das margens onde pequenas cachoeiras derramavam o líquido para fazê-lo circular, o ar ao nosso redor era preenchido com a a fragrância doce e ácida dos ramos de maracujazeiro enroscados na madeira da única ponte cruzando aquele lugar. A estrelas refletiam livres sobre a superfície límpida do lado, em meio ao fino véu de neblina noturna. Ao fim daquela ponte, uma ilha solitária tinha sobre si um gazebo antigo de madeira, em volta de uma árvore de ipê de folhas roxas, envergado pelo tempo, como se tentasse apanhar uma das flores de lótus que floresciam, flutuando próximas àquele lugar.

-Então -Págo parava em meio à ponte -Geralmente nessa altura é que você puxa a faca e tenta me matar enquanto ninguém acordou.

Mavis encarava aquela face exausta e acometida pelo clima antes de respirar fundo, organizando silenciosamente os próprios pensamentos, ou quem sabe contendo um grande impulso de empurrá-lo na água.

-Abra bem os seu ouvidos, Págo -Segurando a gola do pijama dele, ela o empurrava contra o corrimão a sua frente -Você pode até ter enganado o Purehito, conseguido o perdão da Gehena e o silêncio de Jonetsu, mas não o meu. Eu ainda me recordo bem de cada palavra que você me disse naquele beco, eu lembro do seu sonho, da sua ponte e o que nós seríamos nela. Você não me engana, Págo Bóreos, os outros podem baixar a guarda perto de você, entretanto se eu te vir desviando um mínimo que seja, seu eu sequer imaginar que você vai fazer alguma coisa de ruim ao Purehito ou algum daqueles dois, você não vai mais ter que se preocupar com um futuro. Porque eu vou me certificar que você não tenha um ! Eu fui clara ?

-Claro. Eu só acho difícil levar a sério alguém em um pijama rosa e com morangos -A mão livre de Mavis agarrou e esmagou o corrimão logo ao seu lado, sem qualquer esforço -Agora pareceu mais convincente. Enfim, teve todo o trabalho de me trazer aqui pra me falar essas coisas ?

-Não. Eu te trouxe aqui pra ensinar a usar a Autoridade sobre a água.

Levar uma facada seria menos surpreendente para Págo naquela situação.

-Eu...não é uma reclamação, mas achei que você me odiasse. Quero dizer, por que se dar ao trabalho de me ensinar ?

-Primeiro porque por enquanto parece fácil. Até agora. E segundo, porque eu acho que seja o certo.

-Por essa eu não esperava -Ele ajeitava sua gola amassada -Em todo o Reino profundo, você seria a última a sentir pena de mim.

-Não confunda as coisas, eu ainda te desprezo. Como disse, só acho que seja a coisa certa a se fazer, eu talvez não saiba o que levou você a fazer tudo aquilo e como fez, mas simplesmente ignorar não levaria a lugar algum...- Os olhos negros e esverdeados se encontravam por um momento -Você não quer fazer isso, eu não quero também. Nada disso. A profecia, luz e trevas. Nada. Porém nós vamos ser obrigados a engolir tudo, juntos, e não vai ser um velho retrógrado e um príncipe irritado que vão me atrasar.

-Você tem uma maneira diferente de incentivar as pessoas sabia...

-Não foi um incentivo, foi um aviso. Agora, flexione os joelhos, Príncipe Irritado, eu ainda planejo dormir hoje.

Tentei imitar  a mesma pose que o mestre mostrou a mim e aos demais threbil mais cedo.

-A postura que você toma é a base da Autoridade -Comentei.

-Eu sei -Ele retrucava.

-Esse primeiro movimento é bem simples, mas se não conseguir de primeira tudo bem, a gente demorou um tempo até se acostumar com o elemento também.

Estiquei os dedos e dei início a um movimento circular com toda a extensão dos braços até alinhar os dois ao corpo, uma parte da água se erguia do lago num corpo alongado, parecido com o de uma serpente. Continuava o movimento até a altura do peito e empurrei o braço à frente do corpo, com o comando, a água os seguiu no mesmo instante em que foram dados, atacando o ar feito um chicote.

-Tente você. O segredo é movimentar bem os pulsos também.

Págo concordou em silêncio e tentou seguir os mesmo passos e movimentos, apesar de seu rosto continuar pingando de suar, ele parecia se concentrar. Quando a água começou a emergir na altura da ponte, ele hesitou por um momento, parecia que carregava um grande peso sobre os ombros, sua mão parecia incapaz de subir mais e, junto de sua concentração, a água se dissipava.

-Quase...mas não o suficiente. Qual o seu problema ?

-Honestamente ? -Aquela era mesmo uma pergunta triste de se fazer conhecendo o pouco sobre ele -O clima aqui é horrível, quem dorme tranquilo num clima de 22°L ?!

-Isso meio que é frio pra gente...você ainda vai se acostumar. Agora, tente de novo, mais calmo se possível.

Ele retomou a pose de antes, em meio a alguns resmungos em palianês. Dessa vez, sua água chegou ao mesmo ponto de novo, e apesar de parecer se inclinar para cair, desse vez ergueu-se cada vez mais alto, formando círculos como um ser livre pelo ar.

-Isso já é exibição -Reclamei.

-Esse...não sou eu controlando a água, Mavis.

Um gosto amargo e ruim vinha a boca, minha consciência começou a se aliviar em pleno horror. A água fez outra acrobacia no ar e se encaminhou até a parte de cima do muro que ficava atrás de nós dois. Engoli em seco antes de me virar, apesar de ter uma ideia do que encontraria ali. A água se partiu em diversas agulhas que congelavam e perfuravam as pedras aos pés dele, ninguém menos que mestre Damuzai nos espreitava dali de cima.

O Conto dos Exilados:Reflexos de uma utopia opacaOnde histórias criam vida. Descubra agora