POLI-USP, Sim Senhora

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Sexta-feira pode ser meu dia favorito de treino, justamente pelo que eu estava mais assustada: a musculação. Nunca mexi com pesos e alteres, mas sempre pratiquei o fortalecimento de meu corpo, então não foi muito difícil me adaptar. Com treinadora Letícia guiando meus movimentos e uma boa música nos alto-falantes, foi o melhor treino que tive nessa semana infernal. Odeio dar o braço a torcer, mas Luz estava certa ao me mandar dar mais uma chance à Galpão dos Lutadores, e talvez eu realmente consiga fazer isso. Talvez tudo vá dar certo.

Confesso que essa semana de treino me deixou completamente cansada e dolorida em lugares que eu nem sabia que era possível machucar, mas é uma boa dor, do tipo que dá orgulho. Eu me esforcei, e a dor veio junto, e, por mais que eu não consiga levantar meu braço acima de minha cabeça sem sentir uma pontada aguda, estou feliz.

Sexta também foi o dia que eu menos precisei interagir com as meninas do time, o que, com certeza, é um bônus, muito embora a conversa que tive com minha vizinha no carro dela tenha permeado minha cabeça por todo o tempo de treino.

"Eu não me acho melhor do que elas. Elas que pensam ser melhores do que eu" digo para mim mesma enquanto me olho no espelho, atirando uma camisa de botão preta de mangas curtas com finos detalhes em branco por sobre meus ombros nus, deixando-a aberta para exibir meu top preto. Todas essas cores escuras contrastam com minha pele pálida, e é por isso que também mantenho minhas madeixas pretas do jeito que nasceram.

"Você não está lá para fazer amizades, superstar" digo para meu reflexo, tocando o dedo indicador na superfície fria. "Você não está lá pra ficar toda mole, fazendo bracelete da amizade com as meninas. Se você entrou na Galpão, foi pra se tornar a melhor".

Após meu discurso "motivacional", ajeito as costas, ergo a cabeça e me encaro através do espelho. Me sinto forte e bonita, e sorrio para meu reflexo enquanto passo um cinto preto nos passadores da minha calça jeans de lavagem clara ao som de minha playlist de funks. Meu corte de cabelo é curto, como um corte masculino, e raspo eu mesma a nuca e as laterais da cabeça, onde agora estou aplicando um pouco de gel para que os fios curtinhos fiquem no lugar. Quando acabo, aponto os dedos para o espelho, fazendo o gesto de arminhas com as mãos e simulando sons de tiros.

"Pew, pew" rio, dançando um pouquinho na frente do espelho antes de me virar para pegar meu celular, quando me deparo com minha mãe recostada à moldura da porta, com os braços cruzados. Desligo a música na velocidade da luz, pronta para qualquer sermão que ela queira me dar antes de eu sair. Seu cabelo é preto como o meu, porém cai até abaixo de seus ombros; se não fossem por seus olhos cinza diferindo dos meus castanhos, apenas os anos nos diferenciariam. Temos o mesmo nariz longo, com o mesmo calombo no meio, o mesmo sorriso, as mesmas sobrancelhas grossas e o mesmo perfil duro e demarcado, e até mesmo as mesmas expressões faciais. Por mais que me ache muito bonita, sempre desejei ter algo a mais em mim que não minhas írises que remetesse a meu pai. Mas sou a exata cópia de dona Martha.

"Você está... bonita" ela elogia, embora tenha ficado claro pelo modo como ela engoliu em seco antes de terminar sua fala, que ela não aprova muito minha escolha de vestuário. Ela sempre quis que eu fosse mais feminina...

"Veja, eu estou usando maquiagem" exclamo enquanto aponto para meus olhos que exibem um delineado enorme e diferente, que se abre em duas "asas" e que levei quase quarenta minutos para conseguir fazer. Sorrio, esperando que o rímel e o iluminador que passei nas maçãs do rosto e no nariz transpareçam também. Não costumo usar maquiagem, e não gosto muito, mas admito que realmente estou curtindo esse delineado "alternativo" que aprendi no TikTok; não é exatamente feminino, e me faz sentir muito bem comigo mesma.

"Uau..." é tudo que ela diz, sem soar realmente animada ou surpresa, e meu sorriso diminui um pouco, mas não quero que Martha perceba, então me volto novamente para o espelho e finjo arrumar meu cabelo, enquanto espero que ela me diga o que veio dizer e volte para seu confinamento no escritório. "Que horas você pretende voltar?".

Todos os Buracos Negros ao Nosso RedorOnde histórias criam vida. Descubra agora