Engulo em seco enquanto passo pela catraca na segunda-feira seguinte, apertando uma pasta contendo meu atestado entregue por minha psicóloga. Nunca senti a necessidade de apresentar um atestado para minha antiga academia, mas aqui, treinadora Letícia está contando com minha determinação e profissionalismo, então acredito que deva pelo menos um atestado por ter faltado aos treinos por uma semana inteira enquanto o festival de sparring se aproxima.
Acho que ela pensa a mesma coisa, pois mal piso no subsolo e já vejo seu olhar frio em mim, como se me dissecasse. Letícia dá um comando para que as meninas comecem a se aquecer enquanto conversamos, e então faz um sinal para que eu a siga. "Ah, e se a Verônica aparecer, manda ela subir também" ela grita para o time, que já corre em círculos ao redor da área de treinamento, e que responde um uníssono "sim, senhora". É o que eu disse: exército. Resisto à tentação de perguntar se Verônica vem faltando também; eu não quero saber. A curiosidade matou o gato, Catharina.
Subimos as escadas que acabei de descer, e passamos por um corredor lotado de portas localizado após o tatame do jiu-jitsu. Não tinha reparado na existência deste local antes, mas aparentemente é onde ficam os escritórios dos treinadores, além da sala dos preparadores físicos e fisioterapeutas, que eu sei que a academia disponibiliza para o uso de todos os atletas, mas nunca os vi até este momento.
Adentramos um escritório tão impessoal quanto poderia ser. Fora um monitor de computador idêntico aos das outras salas, e artigos de papelaria quase todos na cor preta – tanto os lápis e canetas quando os porta papéis e potes de lápis. Há apenas um porta-retratos, também preto, mas a foto está de costas para mim, para que treinadora Letícia possa vê-lo quando se senta de frente para mim.
Puxo uma das cadeiras de plástico, e, por alguma razão, me sinto como em uma consulta médica, e uma daquelas bem estranhas. Me sento o mais ereta possível, embora minha coluna proteste, e quase ouço a voz de minha mãe dizendo o quanto minha postura está estragada. Posiciono a pasta com meu atestado psicológico sobre a mesa branca e gelada, e a arrasto na direção de Letícia, mas a treinadora não a pega; ela apenas alcança um par de óculos que estava posicionado ao lado do mouse e o coloca na cara antes de entrelaçar suas mãos à sua frente e apoiar sua cabeça ali.
"Pode começar a se explicar, carne nova" ela pede, e engulo em seco ao dar um pequeno e último empurrão na pasta.
"Eu possuo um diagnóstico de Transtorno do Estresse Pós-Traumático" explico, com um discurso que ensaiei com minha psicóloga e que posso, ou não, ter passado os últimos dias memorizando. "Na noite de sábado, houve um..." pauso, procurando a palavra certa. "Incidente. Um incidente que desencadeou em mim uma crise pesada, do tipo que há muito tempo eu não tinha e as quais controlo com terapia e remédios. Acabei entrando em um estado depressivo pelo resto da semana, e por isso faltei esse tempo todo...".
Quero falar mais. Quero me desculpar, quero assegurar-lhe que isso não acontecerá mais, mas sei que é impossível, então apenas paro de falar abruptamente, como se alguém me chutasse por baixo da mesa, me mandando não revelar mais nada. Comprimo os lábios, esperando a opinião de Letícia. Por favor, ainda me permita competir...
Levo um susto quando uma de suas mãos se volta e alcança a minha, a apertando de modo seguro, num rápido, porém significativo, gesto. "Obrigada por me contar isso, Catharina" ela diz, com uma voz amigável, quase... maternal? "Preferiria ter sabido disso no segundo em que você pisou em meu tatame, mas é algo que podemos lidar. Você está melhor? Tem certeza de que está pronta para voltar a treinar?".
Preciso fazer força para não deixar meu queixo cair. Essa mulher, que poderia ser uma general no exército, acabou de me assegurar sobre minha saúde mental, e se mostrar genuinamente preocupada comigo; eu estava esperando uma bronca, estava esperando gritos, estava pronta para qualquer coisa que Letícia pudesse atirar contra mim, menos preocupação genuína. Acredito que não faço um bom trabalho escondendo minha surpresa, porque ela sorri de canto para mim. "Eu sei que pareço dura, e acredito que eu deva ser para que vocês todas consigam ser duronas no ringue, mas não significa que eu não me importe. No segundo em que você entra para meu time, você se torna minha criança, e eu te protegerei até o final dos meus dias".
O primeiro pensamento que se passa pela minha cabeça: minha psicóloga vai me matar. É estúpido e sem sentido, e o descarto imediatamente, mas ela vai, no mínimo, achar graça de como preparei meu atestado e meu discurso, antecipando a pior reação possível de minha treinadora, para esta ser sua reação. Mas consigo sorrir de volta para a mulher que me encara do outro lado da mesa, sentindo-me desconfortável com o gesto, e com a intimidade com a qual treinadora Letícia me trata, porque é incomum para mim. Meu treinador gostava muito de mim, mas nunca me chamou de filha, e nunca discutimos meus assuntos pessoais; ele tinha conhecimento de meu histórico médico, mas era isso. "Muito obrigada. Significa muito para mim" consigo responder.
A treinadora pega meu atestado da mesa, o analisa à frente dos olhos por alguns segundos, e então se inclina para abrir uma das gavetas da mesa e guardar o papel ali, deixando a pasta para que eu a leve de volta para casa. Sinto como se alguém houvesse removido um altere de cima de meus ombros, e respiro fundo. Está tudo bem Catharina, e você se preocupou à toa mais uma vez. "Você não respondeu à minha pergunta: consegue voltar a treinar? Tudo bem precisar de mais tempo".
Antes que eu sequer raciocine uma resposta, ouvimos uma leve batida na porta, e, quando me volto para sua origem, o rosto de Verônica pode ser visto do outro lado da janela, e minha primeira reação é virar-me para frente de novo, tentando evitar que a garota veja meu rosto. Me repreendo imediatamente, mas escolho permanecer olhando para a mesa de treinadora Letícia como se fosse a coisa mais interessante do mundo, enquanto sinto minhas bochechas corarem com a vergonha.
Não deveria ser vergonhoso, já que meus assuntos psicológicos e psiquiátricos não são motivo para tal sentimento, mas, por alguma razão, não consigo evitar. "Pode esperar aí fora, Vee? Já te dou permissão para entrar" diz Letícia, alto para que a menina do lado de fora escute, e seu rosto duro de combate se volta para mim novamente. Preciso inspirar fundo algumas vezes, tentando acalmar meu coração acelerado, situando-me. Agarro a cadeira de plástico num movimento sutil, mas o faço com força, minha mente a se focar no presente, no aqui e agora, e no incômodo do material na palma de minhas mãos.
No segundo em que a treinadora se volta para mim, disparo: "Sim, eu consigo voltar aos treinos. Estou bem novamente" e sorrio para fins de ênfase. A mulher faz um gesto com as mãos em direção à porta, e me libera para voltar ao treino no andar de baixo com o resto do time, e me levanto tão rápido que fico um pouco tonta por meio segundo. Agarro a pasta vazia e voo para fora do escritório, procurando evitar Verônica. Fico esperando que a garota vá tentar me cumprimentar, ou ao menos sorrir, mas, quando consigo ver um pequeno flash de seu rosto, ele está frio. Seus olhos escuros possuem duas bolsas enormes sob eles, e ela adentra a sala onde eu estava de modo letárgico, como se precisasse pensar por vários minutos antes de dar um pequeno passo. Me sinto um pouco mal, porque essa menina definitivamente não está bem, mas procuro afastar esse pensamento e retornar ao treino como se nada tivesse acontecido.
Verônica não aparece quando a treinadora retorna, e nem depois.
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Todos os Buracos Negros ao Nosso Redor
General FictionAVISO DE GATILHO: [menção a estupro de vulnerável] [violência] [homofobia] [discurso de ódio] [ansiedade] Catharina era a melhor boxeadora de sua academia, e sua ambição a levou a buscar por mais. Foi assim que ela se deparou com a Galpão dos Lutado...