O Fim do Início

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Meus joelhos ardem pelo movimento de pêndulo ao qual dedicamos boa parte do treino de quarta-feira. Verônica me dá um soco cruzado pela direita, e abaixo do jeito que viemos praticando para evitar seu punho coberto por uma luva vermelha e preta, desferindo dois golpes nela antes de atacá-la com um cruzado pela esquerda, para que seu corpo pendule. Minha dupla está estranhamente quieta hoje, e nem sequer me perguntou por que eu faltei. Para ser honesta, gosto mais dela quando está de boca fechada, assim posso me focar em seus movimentos.

Verônica é a melhor daqui, e isso já é claro. Se quero ser a melhor, preciso me espelhar nela, e segui-la como uma sombra até que, um dia, a aprendiz se sobreponha à mestra que nem sequer sabia estar ensinando. Assisto à sua respiração pesada, porém, controlada, enquanto a garota repete a sequência de golpes contra mim. Pendulo quando ela ataca, mas confundo os lados e bato a cabeça contra sua luva. É um golpe fraco, e percebo que sua prioridade é acertar a técnica, não aplicar força, mas ainda bambeio para o lado.

"Ai, desculpe" a garota pede. Seu cabelo cacheado está solto e bem armado, e a única coisa que o impede de cair em seu rosto é uma faixinha branca. Sua pele retinta brilha de suor e suas bochechas coram com o calor e o cansaço. Verônica aproxima sua mão de mim, e a ponta de sua luva bate em meu ombro coberto pela camiseta. "Te machuquei?" ela pergunta, e faço que não com a cabeça, aproveitando esse momento para respirar fundo, sentindo a lateral do meu corpo doer porque, provavelmente, não estou ingerindo o tanto de oxigênio que deveria. Quando levo a mão para o local dolorido, treinadora Letícia decreta pausa de dez minutos antes da sequência de abdominais que fazemos em todo final de treino. Procuro não parecer muito aliviada, mas meu corpo inteiro já protesta.

Há algo de muito interessante em assistir enquanto a menina à minha frente agarra o velcro da luva com os dentes e o puxa para conseguir retirá-la e assim ter a mão livre para abrir a outra. Tento não encarar muito, mas é bem difícil. Verônica tem o corpo inteiro torneado e esculpido, que alguém apenas obtém com muitos anos de treinamento. Seus braços são enormes e completamente construídos, e seu abdome malhado sempre fica visível pela sua aparentemente extensa coleção de tops de ginástica. Admito que queria muito me livrar da larga camiseta que uso e ficar apenas de top e shorts como a maioria das lutadoras daqui, mas ainda não estou confortável - eu nunca tirava a camiseta em minha antiga academia, principalmente por ser a única menina em meio a vários homens adultos. Velhos hábitos são difíceis de largar.

"Amiga, você 'tá se sentindo bem?" a voz da garota me chama, e percebo que estava encarando demais. Ela já retirou as luvas, e seca as mãos nas pernas enquanto franze as sobrancelhas cheias para mim, preocupada.

"Ah, estou sim" respondo, soltando um risinho sem graça e desviando o olhar para os grafittis na parede. Verônica leva uma das mãos à nuca enquanto prossegue com o interrogatório que eu já esperava:

"Coach Letícia disse que você faltou a semana inteira. O que aconteceu?".

Estou prestes a dar a mesma desculpa, levemente elaborada para o meu próprio bem que dei às outras meninas que me perguntaram por que faltei - sobre como uma tia iria viajar a trabalho e eu e minha mãe cuidaríamos de seus três filhos pequenos, e eu não podia deixar minha mãe sozinha com eles – quando percebo um detalhe em sua frase. Ela apenas soube que faltei pela treinadora...

"Você... não percebeu que faltei?" pergunto, tentando soar o mais casual possível, mas com o ego levemente machucado, mesmo que eu não queira admitir.

"Ah, eu também não vim na quarta, nem na sexta, e não consegui participar do treino na segunda-feira" responde, como se não fosse nada demais.

"Ah... você está bem agora?" pergunto, como quem não quer nada, e a menina sorri para mim com calma e graça, como se faltar a três treinos não fosse nada, agradece a preocupação, diz que se sente incrível, e começa a caminhar até sua mochila, decretando a conversa como encerrada. Enquanto ando até minhas próprias coisas para um merecido gole d'água, percebo uma pontada de curiosidade ressonando em meu cérebro. Então até a golden girl, a preferida da treinadora falta três treinos seguidos? O que será que aconteceu? Será que ela ficou doente? Teve algum problema familiar? Foi competir fora da academia? Utilizo essa situação para dizer à minha ansiedade, que vem me culpando por ter "matado" uma semana inteira de treinos, que até a menina perfeita da academia ficou um tempo sem vir, mas ainda gostaria muito de descobrir o que ela tinha de tão importante.

Todos os Buracos Negros ao Nosso RedorOnde histórias criam vida. Descubra agora