Quando chego em casa às quatro da manhã, após ajudar Luz a limpar seu apartamento numa tentativa de atrasar minha volta para casa, minha mãe já está dormindo, e quando acordo à uma da tarde, ela já saiu para fazer sabe-se lá o que com minha tia. Então passo meu domingo sozinha.
Não significa que eu faça algo sobre isso. Para ser honesta, não faço nada sobre isso, porque não faço nada. Permaneço em minha cama, sem conseguir me mexer, sem conseguir sair; sinto que se sair, se me mexer minimamente, tudo vai dar errado. Novamente, o buraco negro me suga para seu eixo, e um fina corda se partindo é a única coisa que me impede de cair.
Não como, não vou ao banheiro. Não tomo banho, mesmo estando precisando após a festa de ontem. Não vou ao banheiro. Não sinto nada, apenas o medo de me mexer, de estourar a fina redoma de vidro que me protege de surtar completamente.
Estou neste estado quase vegetativo desde ontem após o acontecimento com Isabelle, e sinto que apenas piorei ao invés de melhorar. Dormi tanto, e ainda estou exausta. Existir é cansativo, e existir neste corpo, nesta mente, é exaustivo; tento inspirar fundo para fazer a dor em meu peito passar, mas parece que apenas a inflo, como se tivesse atirado gasolina ao fogo de um balão de ar quente. Me foco tanto em melhorar, em conseguir deixar o casulo que fiz em minha cama, que apenas pioro meu estado, e a ansiedade que já tomava conta de mim parece aumentar gradativamente.
Alterno-me entre tristeza e ansiedade, entre o sentir nada e o sentir todo o peso do mundo, e, entre estes dois extremos, existe um fantasma. O fantasma Dela.
Em um gemido sussurrado de dor, até por pensar que se falar mais alto a invocarei para dentro de minha casa, chamo o nome Dela. Sonhei com Ela, não consigo parar de pensar Nela desde ontem, e agora a chamo.
"Rebeca".
Era isso que faltava para que a barragem que segurava minhas lágrimas se rompesse, e começo a chorar ruidosamente, tremendo mesmo sob três cobertas, enquanto flashes de Rebeca vêm e vão de minha mente. Ela, seus cabelos pretos como petróleo, seus dedos finos contra minha garganta, seu sorriso de canto enquanto eu a implorava para parar. Enquanto eu a avisava que estava me machucando. Sua risada alta enquanto ela dirigia. Sua voz de cantora de ópera ao som de uma boyband qualquer. Rebeca e sua mão espalmada contra meu rosto ardendo de dor.
"Rebeca" chamo novamente, entre soluços, percebendo inutilmente que caí dentro do buraco negro mais uma vez, e que agora não há ninguém aqui para me puxar de volta, do mesmo jeito que não havia ninguém ali para pará-la. Naquele dia deixei de acreditar em Deus, se é que algum dia o fiz. Naquele dia tive a confirmação de que Deus não existia, porque Ele me deixara para sofrer sozinha. A voz Dela se misturava à voz de minha catequista para mim quando eu era criança: "Deus nunca nos dá um fardo maior do que podemos carregar". Que vá à merda. Eu não posso carregar isso sozinha, nunca pude. Três anos depois, e ainda não consigo nem me erguer da cama ao me lembrar do incidente.
Soluço alto e estridentemente, sozinha em meu buraco negro. Não consigo respirar, não consigo pensar, e juro que vou morrer. Se eu morrer agora será melhor, porque não aguento mais. Não quero ter de lidar com isso mais, eu não aguento mais ser um fardo para meus amigos, e não aguento mais carregar meu próprio fardo, muito maior do que eu consigo suportar em minhas costas frágeis e doloridas. Eu quero morrer, e rezo para qualquer deus, qualquer entidade que estiver aí para que me mate, para que meu coração já acelerado vá ao ritmo do coração de um beija-flor, vá mais rápido que isso, mais rápido que a luz, e que enfim acabe com isso. Eu apenas quero que acabe.
Ouço a voz de minha mãe, tão distante e ao mesmo tempo tão perto que parece até um delírio. Não sei distinguir se ela está aqui mesmo ou se é apenas minha mente doentia alimentando minhas ilusões com a mesma expressão em seu rosto que ela demonstrou no dia do Incidente. Não é exatamente a mesma, pois me lembro daquela expressão com tanta clareza quanto lembro qual o meu nome, mas foi feita nos mesmos moldes. Uma versão moderada daquela tatuada em minha memória com agulhar grossas e doloridas.
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Todos os Buracos Negros ao Nosso Redor
General FictionAVISO DE GATILHO: [menção a estupro de vulnerável] [violência] [homofobia] [discurso de ódio] [ansiedade] Catharina era a melhor boxeadora de sua academia, e sua ambição a levou a buscar por mais. Foi assim que ela se deparou com a Galpão dos Lutado...