capítulo 1

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Minha visão ainda não retornara por completo, então eu não poderia saber com clareza onde estava, a julgar pelo vento frio que açoitava meu rosto poderia ser uma clareira ou um campo aberto, provavelmente o segundo, já que o cheiro de sálvia invadia minhas narinas e a vegetação rasteira acariciava meus pés descalços ainda formigando. O tempo estava escuro e nebuloso, e o latejar em minha cabeça dava ao ambiente um ritmo firme e constante. Por Ulttrah o que acontecera ? Eu apenas conseguia me lembrar de um par de vozes, a primeira era feminina e terna, com a doçura de um campo de rosas e a determinação que preenchia meus ossos e aquecia minha alma; a seguinte era jovem e masculina, e possuía o humor de um amigo, mas as frases de ambas eram apenas resmungos abafados pelo tilintar das dores que atacavam meu cérebro.
Cambaleei alguns passos observando a extensão da campina florida já focada enquanto pensava em onde acordara e o que poderia fazer, eu havia verificado cada parte de meu corpo em busca de ferimentos e sangue assim que abri meus olhos e retomei a consciência, não encontrei nada, apenas uma bermuda coberta de lama com suspensórios então vasculhei minhas lembranças procurando qualquer indício de resposta a minhas perguntas, sem sucesso. Eu seguia com a caminhada mantendo os ouvidos atentos a qualquer possível perigo a espreita e o vale parecia interminável, minhas pernas queimavam com o esforço e minha garganta se apertava a cada passo, olhei o céu para avaliar quanto tempo ainda tinha antes de me encontrar em total escuridão, o sol estava baixo, talvez mais duas ou três horas até a noite engolir o campo por completo e me deixar a única opção de passar a noite sob as estrelas, eu observava cada centímetro de terra considerando o lugar mais confortável para dormir quando senti uma brisa cítrica soprar meus cabelos, ela me convidava a seguir em frente com um puxão no estômago e um sussurrar em meus ouvidos, obedeci, seguindo o cheiro de alecrim que ciciava as flores pelo caminho que se seguia.
Alcancei a encosta e avistei com os últimos raios de sol um conjunto de cabanas que cercavam o início de uma floresta de pinheiros, algumas poucas pessoas circulavam as barracas conversando e carregando bagagens enquanto se arrumavam para a noite, considerando a idade da maior parte delas, eu poderia dizer que estava diante de um acampamento de férias.
Aproximei-me com cuidado usando as sombras para cobrir minhas feições enquanto seguia abaixado, o suficiente para ouvir o que dois garotos comentavam.
_ Ainda não tenho certeza, a fogueira vai durar quase a noite toda e eu sinceramente preciso dormir. _ Dizia o rapaz da direita com os cabelos loiros compridos balançando ao redor de seus ombros largos e os olhos verde escuros e avermelhados indicavam pelo menos duas noites sem qualquer descanso, o que explicava a relutância a participar de qualquer que fosse o evento que aconteceria naquela noite ao redor de uma fogueira.
_ Vai ter a chance de dormir por dias inteiros quando chegar em casa, Jace, vai se arrepender por não participar mais tarde._ Quase cai para trás com as costas na terra tão úmida que estava quase enlameada, apurei meus ouvidos enquanto ele continuava, desligando todos os sentidos restantes e me concentrando por completo na voz_ Temos só mais três dias no acampamento, tem certeza que quer gastar esse tempo dormindo?_ Uma voz jovial e masculina, com um humor guardado e esperando para saltar sobre qualquer assunto, familiar.

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Segui o garoto ainda a uma distância segura, até que entrasse em sua barraca, as lembranças me invadindo, ampliando a intensidade das dores que me seguiam e distorcendo a realidade enquanto dançavam em minha visão: eu estava diante de uma lareira, observando as chamas alegres crepitarem e ouvindo a música que se estendia pela enorme sala de estar, risadas soaram a minha volta animadas pelo início precoce do inverno marcado pela primeira tempestade de neve que se expandia lá fora. Fui retirado da poltrona diante do fogo e transportado por mãos pequenas até a farta mesa de jantar.
Tropecei, enroscando os pés na raiz de um dos pinheiros próximos que principiavam a floresta adiante, mas recuperei o equilíbrio xingando antes de alcançar o chão e continuei seguindo já não tão secretamente o rapaz com quem compartilhei minha infância até aqui.
Ele estava sentado a minha frente, os cabelos ainda molhados do banho e os olhos castanhos brilhando ao tagarelar sobre as músicas que havia aprendido na escola, suas mãos se moviam em gestos dramáticos e seus cabelos pretos caíam sobre os olhos ao jogar a cabeça para trás e gargalhar estrondosamente e com tanta felicidade que fazia com que meus olhos ardessem, mas é claro que eu não poderia chorar de verdade, apenas apreciar as palavras que me eram entregues com tanta espontaneidade.
Meu peito se apertou no momento em que eu o observava adentrar sua cabana, como poderia explicar a ele o que acontecera? Como eu poderia entender o que se passara? Parei diante da tenda com a respiração ofegante, meu coração saltitava tentando absorver toda a emoção ao tocar o tecido da barraca e puxá-lo de lado para que eu pudesse vê-lo. A multidão gritava por todos os lados, levantando-se e pulando de forma que eu quase não poderia enxergar o jogo abaixo, ele havia me explicado detalhadamente como o campeonato funcionava e o que precisaria fazer para vencer semanas antes e eu vinha acompanhando seu progresso desde então, se lembrava bem das regras que me foram ensinadas os times estavam empatados e o tempo se esgotando, e eu torcia desesperadamente enquanto ele manobrava a bola no campo e, aconteceu tão rápido que se eu tivesse piscado não teria visto o gol maravilhoso que foi feito.
Meu amigo me observava com as sobrancelhas arqueadas em uma pergunta silenciosa, aproximei-me um passo preparando as palavras, mas tudo o que consegui dizer foi:
_ Caio _ O nome escorregou tão baixo em minha língua, que não pude ter certeza se ele me ouviu por cima da lufada de ar de minha respiração que preenchia o pequeno espaço.
_ Eu o conheço? _ Caio me fitou de cima abaixo parando os olhos sobre minha bermuda ainda manchada pela terra, os suspensórios, ele se lembrava.
_ Conhece _ Não era uma mentira, ele me conhecia, esteve comigo desde seu primeiro ano de vida e me deu o nome que uso agora _ Sou eu, Teddy.

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